É possível que o abandono de animais domésticos (cães e gatos) tenha aumentado com a crise, ou que a crise possa servir de pretexto a esse acto.
Mas é uma prática - hedionda e criminosa - que está infelizmente enraizada no comportamento português há muito tempo e que é gémea de outra: o mau tratamento a que são quotidianamente submetidos muitos animais (e, em termos de animais domésticos, os cães são as maiores vítimas por estarem mais dependentes dos seus donos, ou "proprietários") e com os mais variados níveis de violência e de desconsideração.
A cidade esconde muitas misérias, e actos miseráveis, deste calibre: cães fechados em apartamentos, sem espaços próprios, empurrados para as varandas sem qualquer tipo de afecto, com doses mínimas e ocasionais de comida e água, tratados como objectos sem sentimentos e emoções.
Mas quem vive em zonas rurais, como eu, vê mais claramente a outra face da moeda: as casotas de cimento em quintais ou em verdadeiras celas sem tecto onde estão aprisionados e acorrentados cães que, um dia, podem ter sido recebidos em casa talvez com mais curiosidade do que afecto antes de serem condenados à morte lenta, com comida que se esgota, com água que vai secando ao longo do dia, sujeitos às temperaturas mais extremas. E, nas estradas, os cães parados que olham para os carros como se acreditassem que os donos que os abandonaram os vêm buscar.
Este tipo de atitude encontra-se em todo o tipo de seres humanos.
Podem ser pessoas muito esclarecidas, podem ter uma consciência social muito aperfeiçoada, podem alardear os sentimentos mais nobres e jurarem a pés juntos que adoram crianças e animais e serem politicamente correctos e convictamente "de esquerda" ou "de direita".
Mas depois, com a impunidade que a sociedade portuguesa lhes garante, são capazes de largar na estrada ou num sítio mais longínquo, e muitas vezes imobilizado, um cão ou um gato que um dia até os encarou com afecto ou com simpatia e que acreditou que podia depender deles para ser feliz à sua maneira.
O Facebook permitiu a divulgação de muitos casos monstruosos. Esta semana, uma revista de dimensão nacional, dedicou a capa à história de cães e de gatos que conseguiram sobreviver e que, infelizmente, devem ser uma minoria. São sinais de alguma consciência social genuína.
Sendo o abandono de animais um crime punido pela lei, havendo tantas expressões de repúdio perante esse tipo de atitude e mostrando tantas pessoas que são capazes de se mobilizar civicamente e de o fazerem em manifestações nas ruas, talvez fosse possível pensar em ir mais longe e unir esforços e vontades para combater com empenho e com convicção o abandono.
E, ao mesmo tempo, denunciar e envergonhar os miseráveis que o fazem.
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