Só a crispação do ambiente nacional explica a polémica pública que separa dois campos de opinião: há quem defenda o abate (previsto na lei) do cão arraçado de "pitbull" que matou um bebé de 18 meses em Beja; há depois os defensores do salvamento do cão, o "Zico", invocando a crueldade do acto.
Não me parece que nenhuma das partes tenha razão e a polémica arrisca-se a chegar ao ponto em que, antes de cair no esquecimento, porá em causa as atitudes e os movimentos de defesa dos animais de muitos dos defensores do "Zico".
O "Zico", pela descrição, é mais um dos muitos cães que não reúnem as características controladas da respectiva raça e que vão crescendo num ambiente completamente impróprio, sem controlo, em espaços que não servem para acolher as suas necessidades de movimento e de vida, eventualmente utilizado como arma ou instrumento de jogo.
O ambiente doméstico e a própria postura da criança - e, segundo os especialistas, as crianças não são percebidas como seres humanos e dominadores como são os adultos - terão levado ao conflito. Um "pitbull", sabe-se lá com que antecedentes, não pode ser mantido numa situação em que se torne uma ameaça.
Diz-se, e é em grande parte verdade, que a culpa é dos donos. O problema é que não são os donos os condenados à morte, por muito reprovável, lesivo para a sociedade e criminoso que o seu comportamento seja.
A lei prevê o abate dos cães considerados perigosos quando há ataques a seres humanos. Talvez se justifique, se o cão chegou a um ponto de perturbação que se torna realmente perigoso.
Mas, independentemente do respeito pela lei, há uma coisa que é necessário ter em conta: poupado à morte, qual será a vida do "Zico"? Com os donos que o transformaram numa máquina assassina? No inferno em vida da maioria dos canis de onde poucos cães conseguem sair? E as ofertas de acolhimento do "Zico" vêm de pessoas capazes de reeducar e de acolher um cão destes?
Se o movimento de defesa do "Zico" parece estar a cometer alguns erros, embora em nome dos princípios mais correctos, o movimento dos que exigem o seu abate podia observar algum recato. Ou ter tento na língua, quanto mais não seja por vergonha.
Ao retirarem a questão ao domínio da lei - que prevê o abate, decerto que com a invocação de motivos muito fortes -, exigindo a morte do cão em troca da morte do bebé, estas criaturas estão a pregar o princípio medieval do "olho por olho, dente por dente".
Além disso, e é o mais grave de tudo, esses idiotas nunca, que se saiba, atenderam aos direitos dos animais, nunca puseram na sua agenda radical o problema dos maus tratos aos cães nem tão pouco abordaram as circunstâncias sociais, e criminais, da utilização dos cães considerados perigosos como armas ou instrumentos de jogo e de afirmação social ou as condições em que, por esse país fora, vivem em condições miseráveis muitos milhares de cães. Talvez por pensarem que os donos dos cães considerados perigosos são eleitores seus...
O ideal seria que esta polémica pudesse contribuir para mudar a atitude de grande parte da sociedade (onde, mesmos nos estratos mais elevados, os cães são deitados fora como objectos quando deixaram de ter graça ou as crianças se cansaram deles) e adequar os mecanismos legais para serem mais eficazes, mais preventivos - a GNR e a PSP ligam pouco ao assunto até ao momento em que um cão morde alguém.. - e mais dissuassores da crueldade de que os animais domésticos são infelizmente vítimas.
Mas para isso seria necessária alguma clareza de raciocinio que, no entanto, parece ter abandonado o local como um cão assustado...