Não sou praticante do carácter completamente "aberto" do que agora se designa por "redes sociais" e quem vir o que publico aqui e no Facebook perceberá que grande parte da minha vida privada está omissa. Aceito, claro, que haja quem opte por expor a sua vida privada e, em certos casos, ate me surpreendo por certas facetas mais íntimas estarem tão pormenorizadamente à vista.
Mas, neste caso, estamos no domínio dos adultos, a quem a lei permite isso e muito mais. E mesmo a acção deliberada, ou não, de com isso poderem estimular, ou satisfazer, "voyeurs". É uma questão de opções individuais de quem, e legalmente, é proprietário do seu próprio corpo e da sua própria individualidade e os usa com toda a liberdade.
Esta liberdade, no entanto, já não é a das crianças.
É comum pais e mães, avôs e avós exporem os filhos, de bebés até praticamente à adolescência (talvez quando os próprios já se acham no direito de o recusarem), nas mais variadas situações e nos inevitáveis fatos de banho nas "redes sociais".
Quando o fazem, no entanto, não estão só a expor os filhos ao mundo mas também a usar as suas imagens sem proteger os seus direitos (que os têm). Estão, na realidade, a oferecer as imagens dos filhos a qualquer pessoa e para qualquer uso. Mesmo para um simples exercício de prazer solitário.
Aliás, seria interessante saber se os pais e as mães que se mostram indignados quando, na praia ou num parque infantil, um estranho lhes fotografa as crianças (uma notícia banal no "Correio da Manhã"), põem no Facebook as fotografias que eles próprios tiram.
Esta prática suscita-me as maiores reservas e, se tivesse agora filhos pequenos (como já tive), não os exporia nas "redes sociais".
Não prevalecendo neste domínio o bom senso (como não prevalece em muitos outros casos nesses mesmos meios), só se pode saudar um acórdão do mês passado do Tribunal da Relação de Évora que, não fazendo jurisprudência, pode indicar um rumo. E as citações, mais longas, justificam-se:
(...) Na verdade, os filhos não são coisas ou objectos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo prazer. São pessoas e consequentemente titulares de direitos. Se por um lado os pais devem proteger os filhos, por outro têm o dever de garantir e respeitar os seus direitos. É isso que constituiu o núcleo dos poderes/deveres inerentes às responsabilidades parentais e estas devem ser sempre norteadas, no «superior interesse da criança», que se apresenta, assim, como um objectivo a prosseguir por todos quantos possam contribuir para o seu desenvolvimento harmonioso: os pais, no seu papel primordial de condução e educação da criança; as instituições, ao assegurar a sua tutela e o Estado, ao adoptar as medidas tendentes a garantirem o exercício dos seus direitos e a sua segurança.
Quanto ao perigo adveniente da exposição da imagem dos jovens nas redes sociais, as organizações internacionais e os Estados têm manifestado crescente preocupação porquanto é sabido que muitos predadores sexuais e pedófilos usam essas redes para melhor atingirem os seus intentos. (...)
Neste quadro a imposição aos pais do dever de «abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais» mostra-se adequada e proporcional à salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e da protecção dos dados pessoais e sobretudo da segurança da menor no Ciberespaço, face aos direito de liberdade de expressão e proibição da ingerência do Estado na vida privada dos cidadãos (...).
(O texto do acórdão relativo ao processo n.º 789/13.7TMSTB-B.E1, pode ser lido aqui.)
Não sou um defensor da intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos mas, neste caso, a lei andará bem se conseguir compensar essa deplorável ausência de bom senso.
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E, já agora, há uma obra, a que aqui já me referi, que explica fundamentadamente uma parte desta problemática: "Perversões", de Jesse Bering. É um excelente complemento ao citado acórdão e ajuda a perceber muita coisa.