segunda-feira, 28 de abril de 2014

"The big picture": o santo guerreiro contra o dragão da maldade


A notícia é esta:

Paulo Branco denunciou em conferência de imprensa na quarta-feira a estratégia da Big Picture e as ligações de um antigo administrador da PT e do Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual (FICA) naquela empresa de distribuição.
O produtor, exibidor e distribuidor já se queixou da situação «insustentável» à Autoridade da Concorrência, ao Instituto do Cinema e do Audiovisual e ao secretário de Estado da Cultura, e crê que «o Ministério Público (MP) tem matéria para investigar». Ao SOL diz: «Se o MP não fizer nada, vou avançar com uma queixa na Procuradoria».
O premiado produtor chama a atenção para a empresa Big Picture, que nasceu para produzir animação. O administrador não executivo da Zon Antunes João teve a seu cargo a pasta do FICA, que concedeu 1,5 milhões de euros àquela empresa. «Pouco depois aparece a Big Picture a actuar na distribuição (com o catálogo da Fox), com o senhor Antunes João à cabeça, que tinha sido o principal mentor do financiamento da Big Picture. Curiosamente, pouco depois a ColumbiaTriStarWarner fecha as portas e a Big Picture fica com o sumo, os catálogos da Sony e da Columbia, e a Lusomundo fica com a Warner».

Mas falta-lhe alguma coisa: "background", o pano de fundo, a "the big picture", ou seja, perceber que além da árvore há uma floresta, o que também é o equivalente à expressão inglesa "the big picture", o grande quadro que convém conhecer antes e depois de ver uma pequena parte dele.
E, neste caso, "the big picture" é a situação da distribuição e de cinema em Portugal (e, já agora, a do "home cinema"), com as recentes alterações do tecido empresarial (a separação Zon/Meo, a queda da Castello Lopes, a entrada em cena da empresa Big Picture, as transferências de catálogos de "home cinema" e de direitos de exibição, a propriedade das salas de cinema, por exemplo).
Este sector até movimenta muito milhões de euros, apesar da dimensão do país, e é notícia noutros países (basta ver o que se passa nos EUA, não apenas na "indústria" mas nas publicações que dela se ocupam, como o "Variety" e o "Hollywood Reporter"). 
Em Portugal, no entanto, não é notícia. Mas já foi. 
No início da década de noventa um conjunto alargado de pessoas que escreviam sobre cinema nos jornais (jornalistas e críticos de cinema, e ainda restam alguns no activo, que devem andar um pouco desmemoriados) conseguiram estabelecer um bom diálogo com a maior parte das empresas do sector, por mérito das duas partes, e associar à crítica de cinema o enquadramento noticioso que o cinema devia, e deve, ter. É dessa altura, e foi um dos pioneiros pela parte empresarial, o administrador da Big Picture, José Antunes João, que hoje é visado na "denúncia" de Paulo Branco.
Aliás, e esse é outro aspecto interessante, este conflito (Paulo Branco vs. Antunes João) já vem de longe.
Paulo Branco já era produtor e exibidor, com as suas várias empresas. Antunes João era nessa altura um dos dirigentes da Lusomundo (que foi uma empresa pioneira no sector e que acabou engolida, e mal digerida, pela então Portugal Telecom) e o sucessor do sempre discreto e eficaz tenente-coronel Luís Silva na Lusomundo. No território pequeno da distribuição e da exibição em Portugal, Paulo Branco e a então Lusomundo mantiveram sempre uma "guerra fria" )que foi uma espécie de guerra de fronteiras entre a distribuição e a exibição) que nunca terá chegado a um acordo de paz, decerto que por motivos muito racionais para cada uma das partes em conflito.
É possível, por outro lado, que Antunes João e a sua Big Picture se tenham fechado à imprensa enquanto Paulo Branco parece ter alargado os seus contactos entre os jornalistas mas, nisto tudo, verifica-se um dos males da imprensa nacional: a falta de memória, a falta de arquivos e o desinteresse pelo enquadramento. É claro que também não se lhe pede mais (nem o público que ainda resta lhe pede mais). 
Por isso, a "big picture" deste velho problema, que tem muito a ver com a crise económica, a diminuição de espectadores e a pirataria (e seria interessante saber como agiria a Lusomundo de Luís Silva neste quadro), fica reduzido à sua expressão mais simplista: o "produtor premiado" e independente ergue-se como um santo guerreiro contra os monopólios da distribuição, que têm como dragão da maldade um homem que até era um modelo de diálogo.
Para o novo jornalismo português parece ser suficiente.


Paulo Branco (© EFE)
 
Antunes João (© Gonçalo Villaverde/ Global Imagens) 




Um acrescento cautelar para os leitores menos avisados: a expressão "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" faz parte do título do filme "António das Mortes" (1969), de Glauber Rocha, um dos expoentes do Cinema Novo brasileiro.

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