No lixo electrónico, que às vezes deixo acumular no "desktop", encontro um "recorte" de que já nem me lembrava nesta minha contemplação do lamentável estado a que chegou a imprensa portuguesa.
É isto:
É do "Público", do passado dia 26, e traz-me à memória uma época, na década de 1990, em que se tornou patente o que me parece ser ainda um enviesamento na imprensa nacional: a grande maioria de quem escreve sobre cinema desconhece, ou ignora, o enquadramento industrial, histórico e cultural da produção audiovisual.
São pessoas, e eram, que limitam o que escrevem aos seus gostos e às suas preferências pessoais, que vivem das exibições privadas de filmes organizadas pelas distribuidoras, e que, quanto à televisão, pode-se imaginar não beneficiem de ofertas diversificadas de séries. As empresas que depreciativamente designam por "serviços de 'streaming'" não lhes devem passar cartão e é natural que os órgãos de comunicação onde escrevam, ou peroram, não lhes paguem esses serviços, nem DVDs, nem nada que se pareça. E, por si só, não vão, nem querem, ir mais longe.
O título do "Público" acerta, mal, no que foi uma expressão (a televisão de "prestígio") que nasceu a partir de um largo conjunto de séries, lançadas sobretudo pela então HBO (agora HBO Max, ainda, em alguns países e, oficialmente, Max), que se distanciavam das séries de produção industrial que abastecem a grande maioria dos canais de televisão.
"The Wire", naturalmente, e tantas outras ("Os Sopranos", "Sete Palmos de Terra", por exemplo, nos EUA) trouxeram temas, pontos de vista, actores e actrizes muitas vezes da chamada "lista A", realizadores, argumentistas e produtores de qualidade e o indispensável apoio orçamental a um sector onde predominavam as séries quase eternas de baixo investimento.
Os canais por cabo, por serem pagos e gerarem uma clientela mais selectiva, acabaram por ser substituídos pelos tais "serviços de 'streaming'", numa iniciativa de novo tipo: são empresas que produzem as suas próprias séries e longas-metragens e que compram e financiam outras séries e longas-metragens e cujo acesso está reservado a quem paga. HBO (agora HBO Max ou já Max em alguns países), Netflix, Prime Video (da Amazon), Disney+ (do grande complexo industrial que é a Walt Disney Company) e Apple TV (da empresa tecnológica Apple) são as principais.
Se tomarmos como referência "The Wire" (HBO Max, para mim, em certa medida, a mais importante série desta nossa época, que foi lançada em 2002), estamos a falar num período de vinte anos, num horizonte onde não há a tendência para, como no cinema, fazer "reboots", ou seja, produzir e lançar uma nova versão de uma história já filmada.
Todos os grandes temas da ficção, em todos os seus domínios, foram explorados em, praticamente, todas as grandes séries desses primeiros anos. É difícil retomar, reinventar ou relançar temas já desenvolvidos. Sobretudo quando nos circunscrevemos a uma única indústria. Se olharmos apenas para os EUA, vemos que tem predominado uma nivelação por cima, ou uma espécie de "normalização". O mesmo aconteceu no Reino Unido, no conjunto dos países escandinavos (onde o "nordic noir" quase se esgotou). Nos países europeus tem havido uma recuperação, com a indústria audiovisual a reorientar-se agora mais para a televisão. Falar em "programação insípida" é uma confissão da mais absoluta ignorância.
Podemos continuar a encontrar nestes países produções de grande qualidade, que começam a encontrar-se na área das mini-séries e que rivalizam com o cinema. Mas é conveniente ir mais longe, num horizonte não alcançável por este tipo de jornalismo, para se ver como floresce a síntese da "televisão de prestígio" e do espectáculo cinematográfico (das imagens em movimento), destacando-se, sobretudo, a produção sul-coreana.
Quem a quiser ver com atenção poderá encontrar, e será um dos seus melhores exemplos, uma extraordinária série de 21 episódios com o modesto título "Vincenzo" (Netflix). A "televisão de prestígio" está, toda ela, aqui: na história de um jovem coreano que cresceu no seio de uma família mafiosa em Itália e que regressa à sua terra de origem... O que se segue é um festival audiovisual onde desfilam quase todos os géneros do cinema.
Aliás, foi também da Coreia do Sul que chegaram também outras séries tão admiráveis, nas suas diversas vertentes, como "Sweet Home" (Netflix), "Woo, Uma Advogada Extraordinária" (Netflix) ou "Snowdrop" (Disney+). Basta ir vê-las.
Mas, aqui chegados, talvez nos devamos interrogar: quem escreve o que o "Público" assim divulga gosta de cinema? Não, acho que não, e o problema também é esse.
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