segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

"Corpos Estranhos": Simon Schama e os seus "negacionistas"


 


Simon Schama, historiador, é um narrador extraordinário e é isso que faz do seu livro mais recente, “Corpos Estranhos” (ed. Temas e Debates, no original “Foreign Bodies), uma obra quase extraordinária. Mas também, em certa medida, quase falhada.

Schama, de que traduzi os dois primeiros volumes de “A História dos Judeus” (ed. Temas e Debates, que foram o meu primeiro contacto com o autor) conta que estava a trabalhar noutro dos seus livros quando decidiu escrever este, inspirado pela expansão do vírus SARS-CoV-2 e da doença que lhe está associada, a covid-19. Schama, percebe-se, foi uma das pessoas que se deixou assustar pela pandemia mais sobrevalorizada de toda a história da humanidade e é com alguma bonomia que relata os pormenores da paisagem do seu confinamento. Como outras pessoas, também terá gostado.

Foi assim que nasceu “Corpos Estranhos”, que é, essencialmente, um relato do combate da vacinação contra a peste e a cólera na Índia, a partir do século XVIII, e das repercussões que teve em Inglaterra, como potência ainda dominante nessa parte do mundo.

A narrativa, que chega quase às 400 páginas (e tomo aqui por referência a edição que li, da editora Simon & Schuster), podia ser fastidiosa. Mas Simon Schama é Simon Schama e o modo como chama ao palco os protagonistas históricos destes acontecimentos é brilhante e o que lemos tem a vivacidade de um bom romance. Destacam-se dois: Waldemar Mordechai Wolff Haffkine (1860 – 1930), um dos heróis judeus de Schama, e Ronald Ross (1857 – 1932). Ambos, cabendo a Haffkine o mérito de ter começado até acabar por ser afastado pelas autoridades inglesas sob um falso pretexto, conseguiram impulsionar o esforço de vacinação contra as doenças, pondo em causa toda a política sanitária de Inglaterra na Índia. Foram, à sua maneira, verdadeiros "negacionistas".

É quando chegamos à página 390 (Simon & Schuster) que a obra derrapa. É a vez de entrar no palco a controversa, mas muito elogiada por Schama, figura de Anthony Fauci, uma espécie de ministro-sombra da Saúde de vários governos dos EUA que foi um dos principais animadores do fascismo sanitário que muitos governos tentaram incrementar em quase todo o mundo, quando a capacidade humana de raciocinar cedeu ao medo animal que se apossou de muitos políticos.

Depois, Simon Schama, como muitos autores (até Stephen King!...), abre fogo, indiscriminadamente, contra os que criticaram os confinamentos, as vacinas da covid-19 (produzidas de modo tão apressado), aqueles que outros se apressaram a classificar como “negacionistas”, Donald Trump e os seus potenciais seguidores (ou seja, todos os que duvidam dessas vacinas).

É curioso, no entanto, que Haffkine e Ross, elogiados por Schama, tenham sido combatidos pelo “establishment” britânico exactamente por duvidarem dos confinamentos, das “respostas ‘sanitárias’ às doenças infecciosas” (por oposição à “imersão de mente aberta na pesquisa científica”) e daquilo a que Ross chamou “barbarismo administrativo”. ~

“Generais e civis foram feitos ditadores de assuntos de que não tinham qualquer conhecimento e, quando as suas tácticas falharam, atribuíram a culpa aos subordinados, aos médicos cujos conselhos tinham frequentemente ignorado e cuja ciência tinham, por hábito, desprezado”, escreveu Ross.

Lembram-se das circenses “reuniões do Infarmed” onde os governantes portugueses, cheios de medo, se escudavam nas opiniões de alguns médicos, cientistas avulsos e “pop-stars” diversas, depois de terem afastado os verdadeiros epidemiologistas? O “barbarismo administrativo” era isto, mais os confinamentos e as multas passadas a quem se sentava nos bancos dos jardins.

Neste seu “Corpos Estranhos”, Simon Schama deixa, ainda, o que parece ser uma explicação, talvez involuntária, para o facto de ainda não ter aparecido o terceiro volume de “A História dos Judeus” (o segundo data de 2018). 

A propósito do regresso de Haffkine à Rússia, onde nascera, depois da sua odisseia indiana, Schama refere-se ao sionismo como “outro beco sem saída nacionalista”. O segundo volume de “A História dos Judeus” terminara com o começo da ascensão do sionismo como visão salvadora de futuro para os judeus e, na sua descrição, Schama parece demonstrar alguma simpatia por esse movimento histórico. Terá mudado de opinião e ter sentido a necessidade de reapreciar o caminho que estava a percorrer, pondo em causa esta sua magna obra? A dúvida parece-me pertinente. 



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