domingo, 19 de maio de 2019

O défice democrático da Serra do Bouro e o advogado que ignora o Estado de Direito (3)



Como se costuma dizer, a luta continua. A do advogado contra o Estado de Direito e a dos seus alvos em defesa do Estado de Direito. 
Vamos ao terceiro episódio, na sequência do que já aqui publiquei, com a transcrição da carta dirigida no passado dia 8 de Maio à criatura por um dos seus alvos.
Em resumo, é isto: o dito presidente da junta ignorou a crítica da primeira carta e manteve a "admoestação". Mas a segunda carta fez mossa e ele resolveu iniciar o processo da "admoestação" desde o início.
Só que não pode. Porque, ao manter a primeira "condenação" por uma contra-ordenação específica, sem reconhecer a sua invalidade, não pode atirar com uma segunda "condenação" pela mesma contra-ordenação!
A carta, a terceira, explica tudo e revela maior conhecimento jurídico do que o citado advogado.

Ei-la, na íntegra:


Exmo. Senhor,

Embora as suas comunicações já sejam suficientemente estranhas, no que se refere ao entendimento que V. Exa. faz do Estado de Direito, no espírito e na letra, a sua carta mais recente, com a referência 19/2019, datada de 24 de Abril de 2019, ultrapassa o que ainda se poderia imaginar.

A saber:

1. Note V. Exa. que, na sua carta anterior (com a referência 15/2019 e data de 2.04.19), decidiu reafirmar e manter a sanção de “admoestação” com que quis condenar-me (com base no auto de notícia por contraordenação NPCO-00005/2019), que eu, com a devida e fundamentada exposição de motivos, contestei na minha carta de 8.04.19, salientando necessariamente a questão da ausência da notificação prévia para exercício do meu direito de defesa. A este respeito, recordo, resolveu dizer que eu é que devia provar que não tinha recebido… o que em absoluto desconhecia existir.

À minha contestação não quis V. Exa. responder em concreto, o que significa que a ela não atendeu e que manteve como válida a obviamente recorrível sanção de “admoestação”.

2. Assim sendo, a sua carta com data de 24 de Abril não faz qualquer sentido.

É que nela notifica-me pela segunda vez do citado auto de notícia por contraordenação, dá-me pela segunda vez dez dias para contestar o exposto no citado documento e, naturalmente, apressa-se pela segunda vez a recorrer à “admoestação”, que tão desejoso parece estar de aplicar, o que faz nestes termos: “a falta de contestação importará na condenação” da signatária.

3. Acontece, porém, que V. Exa. não o pode fazer.

Porque a lei o proíbe!

Porque a signatária já foi uma vez “condenada” com base na mesmíssima contraordenação, o que V. Exa. já confirmou.

4. Acontece, porém, que a signatária conhece a lei e o princípio “ne bis in idem” (ou “non bis in idem”), naturalmente ignorando se V. Exa. também o conhecerá.

Segundo este princípio, o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.

Este princípio jurídico parte do estipulado no n.º 5 do Art.º 29 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, entendendo-se que, como não pode deixar de acontecer no Estado de Direito, o princípio constitucional se aplica a qualquer tipo de infração às leis vigentes no mesmo Estado de Direito.

Além da Constituição e da abundante e justíssima jurisprudência definida pelos tribunais superiores na aplicação em concreto deste princípio, o respeito pelo princípio “non bis in idem” é assegurado, em Portugal, pelos artigos 14.7, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro de 1984, e 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

5. Assim sendo, e já que expressamente V. Exa. não reconhece a invalidade e a nulidade da sanção com que me condenou pela primeira vez, a ameaça da sanção pela segunda vez na sua carta de 24 de Abril é em absoluto infundamentadamente ilegal, inaplicável e violadora das normas do Estado de Direito.

E, como tal, é improcedente. E nula.

6. E é ainda imprescindível acrescentar o seguinte: a irremediável fragilidade legal que existe no auto de notícia que tanto entusiasmou V. Exa.

Repare que nele se afirma que foi a signatária, ao momento, “informada do levantamento do presente auto”.

Acontece que não foi, e a signatária, aqui, nem se refere por agora à (duvidosa) conduta dos guardas.

Se tivesse sido “informada”, de imediato ou posteriormente, o auto de notícia (vide a página 3 de 4) estaria assinado pela signatária.

Só que a signatária nunca o viu na vida, nem sequer foi convidada a assiná-lo.

E nem se pode pôr a hipótese de a signatária não o ter querido assinar. Porque, se não o tivesse querido assinar, teria sido lavrada a respectiva certidão. Como, aliás, se prevê no n.º 2 do Art.º 3.º do DL n.º 17/91, de 10 de Janeiro: “O auto de notícia é assinado pela autoridade, agente da autoridade ou funcionário público que o levantou ou mandou levantar, pelas testemunhas, quando for possível, e pelo infractor, se quiser assinar, devendo ser lavrada certidão no caso de recusa.”

Isto significa que o auto de notícia brandido por V. Exa. é, como tudo o que daí decorre, evidentemente inválido e de eficácia nula.

7. Por isso, como decorre também do que atrás fica exposto, este processo da contraordenação, por todos os motivos, no espírito e na letra, é coxo, está absolutamente invalidado e já não pode ser aplicado, sendo agora nulo e devendo apenas ser arquivado.

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