sexta-feira, 14 de maio de 2021

A génese de "O Último Refúgio" (2): o isolamento

 

O isolamento é sempre um "leit-motiv" poderoso para uma história. Porque o ser humano, no fundo, tem medo de estar sozinho. O medo é profundo e ancestral: a segurança, na época das cavernas, estava no número; o indivíduo sozinho estava condenado, na sua qualidade de presa de predadores inomináveis.

O isolamento, como tal ou na sua versão da solidão, não me assusta. Viver onde vivo familiarizou-me ainda mais com a solidão. O relacionamento com a família mais próxima, com bons amigos, com vizinhos inteligentes e amáveis e com pessoas que, longe ou perto, se revelam seres humanos funcionais e igualmente amáveis, não sai afectado por este isolamento. 

Quase não vejo outras pessoas quando passeio os cães, raramente se vêem pessoas estranhas a andar por aqui e os carros só são mais frequentes ao fim-de-semana. De uma estrada às vezes mais movimentada sai, às vezes, o som da civilização humana que nos rodeia: os carros a passarem por cima de lombas redutoras de velocidade.

Este quotidiano, porém, entrou em ruptura em Março de 2020. Com o estúpido confinamento imposto nessa altura ao País, desapareceram os passeantes do fim-de-semana e o som dos carros ao fundo. Se já havia momentos em que me podia imaginar o último homem no mundo, a partir dessa altura, mais fácil se tornava a abordagem ficcional desta paralisação da civilização humana.

Esta impressão não podia deixar de ser acentuada pela desfiguração da individualidade humana. Ainda hoje me acontece, sair daqui onde ando sem máscara e chegar à capital do concelho, vendo a maioria das pessoas com essa espécie de fraldinha facial e quase perdendo a noção da realidade: que mundo estranho este, onde estamos obrigados a inspirar de novo o ar que expelimos, como se fôssemos obrigados a comer a ,própria merda, isolados do mundo e da restante humanidade.

Era, e é, um bom cenário para uma história inquietante.

O escritor norte-americano Richard Matheson escreveu, em 1954, o que é, seguramente, um dos melhores romances sobre o drama de uma pessoa isolada no mundo: "I Am Legend" (cuja primeira edição portuguesa, na famosa colecção Argonauta, teve o título "Mundo de Vampiros"). "I Am Legend" é a história de Neville, o último homem num mundo onde os seres humanos se transformaram em vampiros. A "lenda" do título é ele: um ser de outra época, facilmente transformável em mito na nova normalidade deste mundo se seres humanos transformados. Como os militantes das máscaras faciais.

"I Am Legend" é, de certo modo, como um contraponto ao mundo de loucura em que James Castello, o meu protagonista, se vê mergulhado depois de um erro que lhe pode ser fatal. Castello é, na solidão da Praia das Bruxas, o último homem na Terra.


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