Como se costuma dizer, a luta continua. A do advogado contra o Estado de Direito e a dos seus alvos em defesa do Estado de Direito.
Vamos ao terceiro episódio, na sequência do que já aqui publiquei, com a transcrição da carta dirigida no passado dia 8 de Maio à criatura por um dos seus alvos.
Em resumo, é isto: o dito presidente da junta ignorou a crítica da primeira carta e manteve a "admoestação". Mas a segunda carta fez mossa e ele resolveu iniciar o processo da "admoestação" desde o início.
Só que não pode. Porque, ao manter a primeira "condenação" por uma contra-ordenação específica, sem reconhecer a sua invalidade, não pode atirar com uma segunda "condenação" pela mesma contra-ordenação!
A carta, a terceira, explica tudo e revela maior conhecimento jurídico do que o citado advogado.
Ei-la, na íntegra:
Exmo.
Senhor,
Embora
as suas comunicações já sejam suficientemente estranhas, no que se refere ao
entendimento que V. Exa. faz do Estado de Direito, no espírito e na letra, a
sua carta mais recente, com a referência 19/2019, datada de 24 de Abril de 2019,
ultrapassa o que ainda se poderia imaginar.
A
saber:
1. Note V. Exa. que, na sua carta anterior (com a
referência 15/2019 e data de 2.04.19), decidiu reafirmar e manter a sanção de
“admoestação” com que quis condenar-me (com base no auto de notícia por contraordenação
NPCO-00005/2019), que eu, com a devida e fundamentada exposição de motivos,
contestei na minha carta de 8.04.19, salientando necessariamente a questão da
ausência da notificação prévia para exercício do meu direito de defesa. A este
respeito, recordo, resolveu dizer que eu é que devia provar que não tinha
recebido… o que em absoluto desconhecia existir.
À
minha contestação não quis V. Exa. responder em concreto, o que significa que a
ela não atendeu e que manteve como válida a obviamente recorrível sanção de
“admoestação”.
2. Assim sendo, a sua carta com data de 24 de Abril não
faz qualquer sentido.
É que
nela notifica-me pela segunda vez do citado
auto de notícia por contraordenação, dá-me pela segunda vez dez dias para contestar o exposto no
citado documento e, naturalmente, apressa-se pela segunda vez a recorrer à “admoestação”, que tão
desejoso parece estar de aplicar, o que faz nestes termos: “a falta de
contestação importará na condenação” da signatária.
3. Acontece, porém, que V. Exa. não o pode fazer.
Porque
a lei o proíbe!
Porque
a signatária já foi uma vez “condenada” com base na mesmíssima
contraordenação, o que V. Exa. já confirmou.
4. Acontece, porém, que a signatária conhece a lei e o
princípio “ne bis in idem” (ou “non bis in idem”), naturalmente
ignorando se V. Exa. também o conhecerá.
Segundo
este princípio, o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes
pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.
Este princípio
jurídico parte do estipulado no n.º 5 do Art.º 29 da Constituição da República
Portuguesa, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela
prática do mesmo crime, entendendo-se que, como não pode deixar de acontecer no
Estado de Direito, o princípio constitucional se aplica a qualquer tipo de
infração às leis vigentes no mesmo Estado de Direito.
Além
da Constituição e da abundante e justíssima jurisprudência definida pelos
tribunais superiores na aplicação em concreto deste princípio, o respeito pelo
princípio “non bis in idem” é
assegurado, em Portugal, pelos artigos 14.7, do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos de 1966, 4º do protocolo n° 7 da Convenção para a Proteção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de Novembro
de 1984, e 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
5. Assim sendo, e já que expressamente V. Exa. não
reconhece a invalidade e a nulidade da sanção com que me condenou pela primeira vez, a ameaça da sanção pela segunda vez na sua carta de 24 de Abril é em absoluto infundamentadamente ilegal,
inaplicável e violadora das normas do Estado de Direito.
E,
como tal, é improcedente. E nula.
6. E é ainda imprescindível acrescentar o seguinte: a
irremediável fragilidade legal que existe no auto de notícia que tanto
entusiasmou V. Exa.
Repare
que nele se afirma que foi a signatária, ao momento, “informada do levantamento
do presente auto”.
Acontece
que não foi, e a signatária, aqui, nem se refere por agora à (duvidosa) conduta dos
guardas.
Se
tivesse sido “informada”, de imediato ou posteriormente, o auto de notícia
(vide a página 3 de 4) estaria assinado pela signatária.
Só
que a signatária nunca o viu na vida, nem sequer foi convidada a assiná-lo.
E nem
se pode pôr a hipótese de a signatária não o ter querido assinar. Porque, se não o tivesse querido assinar, teria sido lavrada a respectiva
certidão. Como,
aliás, se prevê no n.º 2 do Art.º 3.º do DL n.º 17/91, de 10 de Janeiro: “O
auto de notícia é assinado pela autoridade, agente da autoridade ou funcionário
público que o levantou ou mandou levantar, pelas testemunhas, quando for
possível, e pelo infractor, se quiser assinar, devendo ser lavrada certidão no
caso de recusa.”
Isto
significa que o auto de notícia brandido por V. Exa. é, como tudo o que daí
decorre, evidentemente inválido e de eficácia nula.
7. Por isso, como decorre também do que atrás fica
exposto, este processo da contraordenação, por todos os motivos,
no espírito e na letra, é coxo, está absolutamente invalidado e já não pode ser
aplicado, sendo agora nulo e devendo apenas ser arquivado.