quinta-feira, 20 de março de 2025

O Fantasporto e a francesinha



O mais importante da francesinha está no molho e nas carnes que recheiam o seu interior, diz-me Mário Dorminsky, director do Festival Internacional de Cinema do Porto, comentando a francesinha que me preparo para comer no snack-bar Tropical, à beira do cinema Batalha (ou, mais pomposamente, Batalha Centro de Cinema), onde decorre o Fantasporto, na primeira semana de Março.

E é verdade, realmente. A francesinha, que é agora um petisco gourmet e que gosto de comer quando vou ao Porto, ou arredores, começa por ser uma simples sanduíche. O pão pode ser mais banal ou mais original, mas, depois, o essencial são as carnes nobres e o molho que tudo cobre. E é por esse meio que se transforma uma sanduíche de aproveitamentos num prato "gourmet" de categoria.

A asserção irónica de Mário Dorminsky, que a par com a sua mulher Beatriz Pacheco Pereira dirige o Fantasporto há 45 anos, acontecimento que é hoje um empreendimento familiar de êxito e um símbolo de resistência cultural (contra todos os obstáculos e calúnias traiçoeiras), assenta como uma luva a esta edição do festival portuense: os filmes de abertura e de encerramento foram medíocres mas as dezenas de longas-metragens e curtas-metragens oriundas de vários países, que preencheram as várias sessões diárias do popular "Fantas" durante a semana que terminou a 9 de Março, estiveram, em termos de qualidade, muito acima da média.

Mais em pormenor: o filme da sessão de abertura foi “Criadores de Ídolos”, de Luís Diogo, um “thriller” português com uma história tosca gizada e contada a traço grosso e “product placement” a mais; e o de encerramento foi “Stealing ‘Pulp Fiction´”, de Danny Turkiewicz, uma homenagem desinspirada a Quentin Tarantino (de que não sou fã).

Entre um e outro passaram dezenas de filmes que também serviram, como em geral servem os festivais de cinemas, para dar a conhecer outras cinematografias. Como, por exemplo, a interessante longa-metragem angolana “A Caixa”, de Carlos Rodrigues e António Figueirinhas, da empresa Diamond Films.

Convidado para o júri internacional, juntamente com Isabel Pina e Louis Savy (director do Festival de Cinema de Ficção Cientifica de Londres), fiquei praticamente sem tempo para ver outros filmes que não fossem as 23 longas-metragens e as 28 curtas-metragens que estava obrigado a ver, e que vi. 


Beatriz Pacheco Pereira, Louis Savy, Isabel Pina, Pedro Garcia Rosado e Mário Dorminsky




Na minha apreciação dos 51 filmes a concurso, e acompanhando uma classificação valorativa clássica, separei-os por estrelas, o que me deu o seguinte resultado:


*****
“A Place Called Silence”, de Sam Quah (China)

****
“Chainsaws Were Singing”, de Sander Maran (Estónia)
“Dollhouse”, de Shinobu Yaguchi (Japão)
“Espantaho/Scarecrow”, de Chito S. Roño (Filipinas)
“Heavens: The Boy and His Robot”, de Rich Ho (Singapura)
“Succubus”, de R. J. Daniel Hanna (EUA)

***1/2
4 filmes

***
9 filmes

**
2 filmes

*
1 filme

Zero
1 filme



No que se refere às curtas-metragens, gostei, em especial, de “Gosto de Te Ver Dormir”, do português Hugo Pinto, “Marimonda”, de David David (Colômbia), “Playing God”, de Maweo Burani (Itália/França), e “There is an App for That”, de Andreas Flack (Alemanha/Israel).

No apuramento dos premiados, os prémios deste júri (o júri principal, entre os três que apreciam os filmes a concurso) foram para os filmes: “Dollhouse” (Melhor Filme), “Cielo” (Reino Unido/Colômbia, Prémio Especial e Melhor Fotografia, Albert Sciamma e Alex Metcalfe), “A Place Called Silence” (Melhor Realização), “Succubus” (Melhor Actor: Brendan Bradley), “Espantaho/Scarecrow” (Melhor Actriz: Judy Ann Santos), “Ghost Killer” (Japão, Melhor Argumento: Yugo Sakamato), “Happy People” (Melhor Curta-Metragem, de Budavári Balázs, e “Gosto de Te Ver Dormir” (Menção Especial). Não divergi muito da opinião maioritária do júri. No conjunto, incluindo mesmo os premiados das outras secções, poderá dizer-se que os prémios foram o molho, riquíssimo, desta francesinha cinéfila.




"A Place Called Silence": um filme intenso sobre o "bullying" adolescente,
que deve ter assustado muita gente





"Dollhouse": um dos cartazes do filme e a boneca sobrenatural num dos palcos do Fantasporto






"Espantaho/Scarecrow": um dos cartazes do filme e a actriz Judy Ann Santos
com o prémio de Melhor Actriz




"Ghost Killer", prémio do Melhor Argumento: uma jovem é possuída por um assassino, de quem herda as capacidades combativas




"Succubus": terror cibernético



"Cielo": boas intenções e esoterismo




Se “Dollhouse” teve um reconhecimento unânime adequado, bem patente na ovação em pé do público na sessão em que foi apresentado, foi pena que “A Place Called Silence”, uma obra intensa e cortante sobre o “bullying” entre adolescentes, acabasse por ficar quase omitido. Aparentemente, as pessoas preferem filmes fotograficamente muito bonitos, espiritualmente reconfortantes, esotéricos, cheios de boas intenções e vazios de polémica.

Só que o cinema fantástico mais genuíno não é feito de postulados metafísicos, como, aliás, tive oportunidade de salientar na Movie Talk em que participei, na companhia de Beatriz Pacheco Pereira, com uma intervenção sobre “100 anos de violência redentora: porque adoramos o cheiro do napalm no cinema”. Onde salientei a importância de filmes como "O Couraçado Potemkine" (que faz 100 anos este ano), de Serguei Eisenstein, de "A Quadrilha Selvagem", de Sam Pekinpah, e de "Apocalypse Now", de Francis F. Coppola, entre outras obras.


Na companhia de Beatriz Pacheco Pereira, sobre a violência e o medo 



*

Neste regresso ao Porto, um ano depois (onde estive também na edição do Fantasporto de 2024), deparei-me outra vez com um estado de confusão urbana que parece ser causada, ainda, por obras que parecem intermináveis.

Estas obras, no entanto, não afastam os turistas, cujo afluxo transformou a zona mais central do Porto num viveiro de lojas de recordações turísticas. Nem as obras nem, aliás, um inesperado imposto de 3€, que é extorquido, por cabeça, a todos os visitantes que pernoitam na cidade e cujo ónus acaba por ser passado para os estabelecimentos hoteleiros.

Não sei para que serve este imposto, mas não posso deixar de pensar que a Câmara Municipal do Porto bem podia aproveitar a sua receita para, pelo menos, criar meios de anunciar nas ruas a realização do Fantasporto, em vez de fazer de conta que é inexistente o festival que decorre no centro de uma cidade que já foi mais bonita.




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