O Batalha, lá ao fundo |
Mas é aí que, depois do Auditório Nacional de Carlos Alberto, o seu berço histórico, e do Rivoli (muito mais central e muito mais aprazível), esteve realmente a funcionar a 44.ª edição do Fantasporto, que deve ser o mais antigo festival de cinema a sério que ainda existe em Portugal.
O Batalha é da Câmara Municipal do Porto, parece, mas esta entidade nem sequer publicita uma mostra internacional que oferece ao Porto uma visibilidade extraordinária.
Nesta cidade de novos hotéis de luxo e de fluxos incansáveis de turistas, as entidades oficiais parecem olhar com desprezo para o impressionante desfile de personalidades estrangeiras que vêm acompanhar os seus filmes e a não menos impressionante, e extensa, cobertura noticiosa da comunicação social estrangeira. A desatenção é de estranhar.
O sítio escolhido parece, a quem vem de fora, quase clandestino. O Batalha fica numa espécie de uma colina, sem transportes públicas e com uma pouco convidativa "sopa dos pobres" à beira. As duas salas de cinema estão bem equipadas, tecnicamente, mas o bar funciona de forma irregular. E a legião de adolescentes fardados a negro e de seguranças, todos sem jeito nem formação para lidar com o público, não ajuda.
Talvez estas circunstâncias e a chuva que ia castigando quem andasse a pé expliquem a impressão que, por vezes, tive de que o público não parecia tão interessado. Mas é inegável que o Fantasporto continua a ser um festival de cinema com duas, ou três, coisas essenciais: filmes (e já estive em festivais de cinema onde não havia nada para ver...), público e qualidade.
Os seus directores, Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky, podiam ter desistido do festival que criaram, mas não o fizeram. A escassez de interesse da miserável imprensa nacional e o desprezo objectivo das entidades oficiais a isso convidaria. Mas eles não desistiram. Melhores são por isso.
Conheço este festival, e outros, desde 1983 e tenho-o acompanhado, embora nos últimos anos com alguma irregularidade. Nesta jornada portuense, em que vi cerca de 40 filmes, sem conseguir acompanhar toda a programação e as suas várias secções, regressei também ao mundo de cinema (onde resido, no concelho de Caldas da Rainha, não há salas de cinema dignas).
E desse regresso ficam aqui alguns destaques, com dois apontamentos.
Se houve cinema de grande qualidade, houve dois pormenores menos interessantes. Por um lado, encontrei diversas longas-metragens e curtas-metragens cujos autores pareceram mais interessados em expressar inquietações esotéricas em exercícios formalistas quase sem história. E o cinema, como a literatura, precisa de histórias, de ficção com princípio, meio e fim (mesmo que em aberto). Por outro lado, também passaram pelo Porto os ventos do "wokismo" (que levaram a que uma actriz fosse premiada por ser índia, representar uma mulher maltratada pelo marido e ter tendência para a obesidade...).
Do que vi, os meus destaques vão para as seguintes obras:
"Clawfoot", de Michael Day, é uma obra modesta de crime e de engano(s) que começa com obras numa casa de banho e acaba numa orgia de sangue. A história está bem construída, até ao ponto em que não é possível brincar mais com a boa fé do espectador, que também é bem enganado, e a sua actriz principal, Francesca Eastwood (filha de Clint Eastwood) é a personagem com quem os espectadores mais se identificarão, revendo-se nos seus olhos luminosos e na expressão corporal com que tenta navegar por entre os desejos violentos que nem conseguimos adivinhar e os homens ameaçadores de quem quer vingar-se. Não há personagem feminina mais forte nesta selecção de obras.
"Bayan the Assassin, MD", por agora com dois filmes no que parece ser uma série japonesa, traz-nos um assassino profissional na época dos samurais que é médico (de acupunctura) e que mata com agulhas as suas vítimas. O actor Toyokawa Etsushi, que já não é novo, interpreta esta figura perturbada com uma "gravitas" soberana. A realização é de Shunsaku Kawake.
"The Last Ashes", de Loïc Tanson, foi também uma surpresa. É um filme do Luxemburgo, com uma história de obscurantismo religioso e opressão familiar no quadro histórico das convulsões políticas do século XIX. É uma história épica com uma mulher vingadora em luta contra uma tribo familiar. As facilidades narrativas em que por vezes cai não o prejudicam.
Finalmente, a curta-metragem "Stabat Mater", de Hadrien Maton, Quentin Wittevrongel, Arnaud Mege, Coline Thelliez, William Defrance, é um elogio angustiado a uma das mais difíceis expressões culturais, a escultura, combinando a exemplaridade visual com a música, que sustenta adequadamente a narrativa.
A informação sobre o Fantasporto 2024 e sobre os filmes exibidos está toda aqui. |
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