terça-feira, 12 de março de 2024

Fantasporto, 44 anos: notas de uma visita a um grande festival escondido


O Batalha, lá ao fundo

Sobe-se rua após rua, por entre turistas europeus e imigrantes hindustânicos. Não há placas toponímicas que ajudem a que um "estrangeiro" se oriente nesta zona tão central do Porto. Nem, tão pouco, o que é de espantar, cartazes ou outros suportes visíveis que nos digam que está em curso o Festival Internacional de Cinema do Porto/Fantasporto (entre os dias 1 e 10 de Março) no cinema Batalha, agora pomposamente designado Batalha Centro de Cinema. 

Mas é aí que, depois do Auditório Nacional de Carlos Alberto, o seu berço histórico, e do Rivoli (muito mais central e muito mais aprazível), esteve realmente a funcionar a 44.ª edição do Fantasporto, que deve ser o mais antigo festival de cinema a sério que ainda existe em Portugal.

O Batalha é da Câmara Municipal do Porto, parece, mas esta entidade nem sequer publicita uma mostra internacional que oferece ao Porto uma visibilidade extraordinária. 

Nesta cidade de novos hotéis de luxo e de fluxos incansáveis de turistas, as entidades oficiais parecem olhar com desprezo para o impressionante desfile de personalidades estrangeiras que vêm acompanhar os seus filmes e a não menos impressionante, e extensa, cobertura noticiosa da comunicação social estrangeira. A desatenção é de estranhar.

O sítio escolhido parece, a quem vem de fora, quase clandestino. O Batalha fica numa espécie de uma colina, sem transportes públicas e com uma pouco convidativa "sopa dos pobres" à beira. As duas salas de cinema estão bem equipadas, tecnicamente, mas o bar funciona de forma irregular. E a legião de adolescentes fardados a negro e de seguranças, todos sem jeito nem formação para lidar com o público, não ajuda.

Talvez estas circunstâncias e a chuva que ia castigando quem andasse a pé expliquem a impressão que, por vezes, tive de que o público não parecia tão interessado. Mas é inegável que o Fantasporto continua a ser um festival de cinema com duas, ou três, coisas essenciais: filmes (e já estive em festivais de cinema onde não havia nada para ver...), público e qualidade. 

Os seus directores, Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky, podiam ter desistido do festival que criaram, mas não o fizeram. A escassez de interesse da miserável imprensa nacional e o desprezo objectivo das entidades oficiais a isso convidaria. Mas eles não desistiram. Melhores são por isso.

Conheço este festival, e outros, desde 1983 e tenho-o acompanhado, embora nos últimos anos com alguma irregularidade. Nesta jornada portuense, em que vi cerca de 40 filmes, sem conseguir acompanhar toda a programação e as suas várias secções, regressei também ao mundo de cinema (onde resido, no concelho de Caldas da Rainha, não há salas de cinema dignas). 

E desse regresso ficam aqui alguns destaques, com dois apontamentos.

Se houve cinema de grande qualidade, houve dois pormenores menos interessantes. Por um lado, encontrei diversas longas-metragens e curtas-metragens cujos autores pareceram mais interessados em expressar inquietações esotéricas em exercícios formalistas quase sem história. E o cinema, como a literatura, precisa de histórias, de ficção com princípio, meio e fim (mesmo que em aberto). Por outro lado, também passaram pelo Porto os ventos do "wokismo" (que levaram a que uma actriz fosse premiada por ser índia, representar uma mulher maltratada pelo marido e ter tendência para a obesidade...).

Do que vi, os meus destaques vão para as seguintes obras:




"Creation of the Gods I: Kingdom of Storms", do realizador chinês Wuershan, é um dos melhores exemplos contemporâneos do cinema de grande espectáculo, inteligentemente concebido e concretizado, numa festa coerente de efeitos visuais e interpretações notáveis.





"Cold Meat", de Sebastian Drouin, foi um filme surpresa, económico na narrativa, mas extraordinariamente eficaz no modo como conta a história, com sobressaltos e reviravoltas que prendem o espectador e num registo minimalista, beneficiando de actores sem falha (onde se destaca Allen Leech, um actor de rosto angelical, que entra em cena como personagem frágil e insegura, capaz de fazer das fraquezas forças para enfrentar o marido abusador de uma mulher em aflição para depois fazer pior…) e da construção de um ambiente opressivo com argumento virtuoso e de poucos diálogos, que dá o devido relevo a um dos mais importantes pressupostos das histórias de terror: o que não se vê é o que mais medo causa. 



 


"The Complex Forms", de Fabio d'Orta,  é o filme experimental por excelência, indispensável num festival de cinema. A história, e há história!, podia ser contada de uma maneira banal, mas não foi essa a opção do realizador, que preferiu o caminho mais difícil: o recurso à cenografia e aos grandes planos, a construção mecânica das criaturas ameaçadoras, uma fotografia irrepreensível a preto e branco e uma duração ainda mais difícil para a divulgação da obra: 74 minutos. É um trabalho exemplar de realização.






"Clawfoot", de Michael Day, é uma obra modesta de crime e de engano(s) que começa com obras numa casa de banho e acaba numa orgia de sangue. A história está bem construída, até ao ponto em que não é possível brincar mais com a boa fé do espectador, que também é bem enganado, e a sua actriz principal, Francesca Eastwood (filha de Clint Eastwood) é a personagem com quem os espectadores mais se identificarão, revendo-se nos seus olhos luminosos e na expressão corporal com que tenta navegar por entre os desejos violentos que nem conseguimos adivinhar e os homens ameaçadores de quem quer vingar-se. Não há personagem feminina mais forte nesta selecção de obras.






"Bayan the Assassin, MD", por agora com dois filmes no que parece ser uma série japonesa, traz-nos um assassino profissional na época dos samurais que é médico (de acupunctura) e que mata com agulhas as suas vítimas. O actor Toyokawa Etsushi, que já não é novo, interpreta esta figura perturbada com uma "gravitas" soberana. A realização é de Shunsaku Kawake.






"The Last Ashes", de Loïc Tanson, foi também uma surpresa. É um filme do Luxemburgo, com uma história de obscurantismo religioso e opressão familiar no quadro histórico das convulsões políticas do século XIX. É uma história épica com uma mulher vingadora em luta contra uma tribo familiar. As facilidades narrativas em que por vezes cai não o prejudicam.






Finalmente, a curta-metragem "Stabat Mater", de Hadrien Maton, Quentin Wittevrongel, Arnaud Mege, Coline Thelliez, William Defrance, é um elogio angustiado a uma das mais difíceis expressões culturais, a escultura, combinando a exemplaridade visual com a música, que sustenta adequadamente a narrativa.



Se os encontrarem, no cinema, na televisão ou em qualquer site, vejam-nos. E lembrem-se de que, em Portugal, foi o Fantasporto que os apresentou.


A informação sobre o Fantasporto 2024 e sobre os filmes exibidos está toda aqui.











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