sexta-feira, 15 de maio de 2020

O medo come a alma


Há dois filmes famosos que, quarenta anos depois, continuam a ser dois dos mais assustadores de toda a história do cinema. O primeiro é “Tubarão” (“Jaws”, 1975), de Steven Spielberg, e o segundo é “Alien, o Oitavo Passageiro” (“Alien”, 1979), de Ridley Scott.
Em “Tubarão”, os banhistas de uma praia são ameaçados (e atacados) por um tubarão branco gigantesco. Dito assim, não parece nada de especial. Mas acontece que a fera sanguinária é mantida oculta durante grande parte do filme. O que se vê é uma força irresistível que arrasta uma banhista solitária para o abismo do mar, uma barbatana a rasgar as águas por entre os banhistas e o pânico incontrolável de quem está na praia, dentro e fora de água, com acordes que hoje são clássicos. Só mais tarde é que podemos ver o monstro em toda a sua dimensão.
Em “Alien” há um monstro extraterrestre numa nave espacial, que começa por irromper do peito de um dos tripulantes e que, mudando de forma, aterroriza e mata os restantes, escondendo-se nas sombras, vendo-se apenas alguns pormenores do seu corpo durante grande parte do filme. A ameaça é invisível.
O que torna estes dois filmes exemplarmente assustadores é a simples ocultação da ameaça. Ela é tanto mais perigosa e aterrorizadora quando não a vemos. Se tiver uma aparência familiar (o palhaço de “It”, de Stephen King) ou hiperbolicamente descrita (os monstros delirantes de H. P. Lovecraft), e se for bem construída, a ameaça é assustadora. Mas quando ela se confunde com o meio em que estamos e não a vemos, é muito pior. Henry James demonstrou-o em “The Turn of the Screw” (“Calafrio”, 1898) e John McTiernan no filme “Predador” (1987).
Há cerca de dois meses, como aqui contei, fui jantar a um dos meus restaurantes preferidos. O restaurante e as ruas em redor estavam sem gente. Na véspera, o ginásio que eu frequentava fechou. O Governo mandou fechar as escolas. O Presidente da República, apesar de ser o comandante supremo das Forças Armadas, fechou-se em casa com medo.
O que causou este medo foi um “inimigo” invisível, um vírus, vindo do Oriente como tantos outros e activo há vários meses.
Nas duas semanas anteriores, pelo menos, as televisões nacionais já tinham começado a abrir os seus telejornais com as notícias do “novo coronavírus”. Todos os canais o fizeram, e fazem, numa escalada de horas sobre uma única notícia: um vírus e as suas consequências.
Começámos a viver sob o império do medo. O ambiente mediático estava criado, as autoridades políticas decretaram regimes de excepção, impuseram limitações de toda a ordem (com excepções transformadas em favores políticos), fecharam Portugal e a sua economia. Há um ditado português que postula: “Quem tem cu, tem medo”. Portugal viveu 300 anos de Inquisição e 48 de um regime igualmente repressivo. Estas fatalidades deixaram marcas: ter medo é tão natural como uma região corporal que, aliás, o ser humano nem consegue ver bem.
O cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder deu a um dos seus filmes um título exemplar: “O medo come as almas” (“Angst essen Seele auf”, 1974). E Frank Herbert, o autor da magnífica série literária “Dune”, formulou este mantra como lema de uma organização político-religiosa da sua epopeia: “Não devo ter medo. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz consigo a aniquilação absoluta. Enfrentarei o meu medo.”
O governo português, o Presidente da República e grande parte da classe política, com o apoio de muitos “sábios” são assalariados do Estado (portanto, de emprego e salárioseguros), agiram de acordo com a associação do medo à sua anatomia: quiseram matar o “inimigo” invisível com o fecho do país.
Conseguiram, com isso, paralisar a economia, adiar o contágio (benigno, maligno e nem uma coisa nem outra) e bloquear sectores que, noutra perspectiva (que, felizmente, tem sobrevivido ao pensamento dominante), poderiam ter continuado a funcionar.
Depois, acossados por outro medo (a quase morte da economia devido às suas decisões), os decisores quiseram ir mais longe. Tinham tomado o gosto ao dedo e aliviado os seus receios, típicos dos governos inseguros que deslizam invariavelmente para a tirania.
E com isso temos militares a guardar as praias e os banhistas a manterem distâncias mensuráveis a fita métrica no meio das ondas, uma direcção-geral a intervir nos jantares privados dos cidadãos em suas casas e normas que obrigam a que, nos restaurantes, só se sentem à mesma pessoas as pessoas que vivam em comunhão de habitação (sem dizer, por exemplo, como é que ela se comprova, quem é que a fiscaliza e como é que se resolve o problema de duas pessoas decidirem ir viver juntas e irem jantar fora… antes de mudarem as suas moradas).
Segundo está previsto, os restaurantes em Portugal poderão abrir a partir do próximo dia 18. Muitos sobreviveram à crise, outros não, outros puseram-se a vender para fora as iguarias que fazem. São um sector fundamental da nossa economia e um elemento de conforto da nossa vida.
Enfrente o medo, leitor – vá aos restaurantes. Se ainda tem dinheiro, vá comer fora. Escolha os melhores, experimente outros, recupere a pequena felicidade associada ao acto de comer a comida cozinhada pelos outros. Use a liberdade a que tem direito, que é aquela que foi recuperada em 25 de Abril de 1974.
Se o fizer, neste e noutros domínios, se resistir às tentações totalitárias de quem se move pelo medo, estará a lutar pela sua própria vida e pelos seus direitos. E pela nossa civilização.

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