segunda-feira, 24 de julho de 2017

A propósito de “Guerra de Tronos”: cristãos-novos e parolice snob



A "Guerra dos Tronos" pode ser um fenómeno de entretenimento audiovisual e de televisão em todo o mundo mas em Portugal é um fenómeno muito especifico que cai por inteiro no domínio da parolice: num extremo agitam-se os cristãos-novos do entretenimento televisivo e no outro os snobs botas-de-elástico, orgulhosos por nunca terem visto um episódio.
E, para quem sabe, a "Guerra dos Tronos" não é uma inovação em termos televisivos embora, numa perspectiva global (e só depois de terminada), até possa ser comparável à trilogia "O Senhor dos Anéis".
A produtora norte-americana HBO, que lançou esta série, já tinha feito "Roma" há 12 anos. Durou duas temporadas, escandalizou e assustou. Foi cancelada.
"Duna" (os seis romances de Frank Herbert, que parece estar a caminho da televisão) é mais sugestivo do que Maquiavel em termos políticos.
"The Wire" (2002) abordou, como nenhuma outra série ou filme de longa-metragem, os vários aspectos (droga, política, imprensa, sindicalismo, etc.) das sociedades modernas.
"Prison Break" (2005), delirante na história, foi um marco na definição da narrativa televisiva.
"Big Little Lies" (2015) é uma crónica contemporânea com tempo para respirar, tal como "The Night Of" (2016) se deu ao luxo de filmar silêncios com toda a calma do mundo, o que seria praticamente impossível no cinema.
E há "House of Cards" (2013), delirante mas ilustrativo. Ou o shakespeareano "Sons of Anarchy". E tantas outras séries…
O audiovisual mudou radicalmente. A famosa realizadora Jane Campion, que já se estreou na televisão (com a série “Top of the Lake", a que acrescenta agora uma segunda temporada) disse à “Total Film” (edição de Agosto): “É tão excitante na televisão: pode-se dizer o que raio se quiser. E não há problema. No cinema, insistem e insistem: ‘Oh, meu Deus, disse mesmo isso? É tão agressiva!’”.


O que cá não se vê

A televisão contemporânea, em matéria de ficção, é isto e muito mais, da narrativa às histórias, da liberdade de temas à fantasia mais desbragada, da qualidade absoluta às histórias mais fantásticas.
O cinema em geral está hoje, no que se refere aos conteúdos, numa encruzilhada. O cinema "mainstream" raramente mostra filmes acima da média. O cinema independente procura colmatar-lhe as brechas, mas anda atrás da tendência maioritária. A televisão é hoje o elemento audiovisual mais inovador e de maior futuro.
Claro que não é isso o que cá se vê. O panorama da produção televisiva nacional é deprimente. A imprensa vive à conta das promoções das distribuidoras de cinema e ignora o resto. Os críticos de cinema existentes, que vivem à conta dos "visionamentos", fazem gala em ignorarem a televisão. Enaltecem as virtudes das salas às escuras, dos "dark rooms" do prazer cinéfilo. O resto não vêem, não conhecem. Mas já os houve, profissionais e atentos.
Ver as séries de televisão não tem mal. Não faz mal a nada.
As boas séries correspondem, como “The Wire” bem mostrou, à narrativa dickensiana. A televisão de ficção é uma irmã da literatura de ficção. Dão-se bem, e até se complementam. Há sequências perfeitas, interpretações admiráveis, narrativas enleantes, temas para todos os gostos. E qualidade, muita qualidade, em quase tudo.
Vá, vejam televisão, vejam a “Guerra dos Tronos”, mas também “The Walking Dead”, “Billions” ou “Arrow”. Entretenham-se.
E sem preconceitos, já agora, que é coisa com que muitos "opinion makers" disfarçam a sua parolice.

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