terça-feira, 9 de março de 2021

A grande revolução cultural do Ocidente



Quando, no próximo dia 18 de Março, a HBO estrear “Zack Snyder’s Justice League” em todo o mundo, ficará fechado o primeiro ciclo, de 20 anos, da maior revolução cultural do Ocidente: a ascensão da televisão como meio de síntese e de excelência do audiovisual.

A revolução começou em 1999 na empresa produtora de televisão HBO com a série “The Sopranos”. Foram 86 episódios e oito anos a contar a história de uma família da Mafia, com James Gandolfini a fazer de “padrinho”, explorando com todos os pormenores uma história com ramificações e pormenores que não caberiam no formato de hora e meia a duas horas de uma longa-metragem, numa linguagem adulta e sem limites.

As duas principais características desta televisão de tipo novo já aí estavam: tempo para desenvolver uma história e as suas personagens, ausência de limitações ditadas pela eventualidade sensibilidade dos espectadores ou por questões etárias. Com o passar dos anos, as potencialidades viriam todas ao de cima: a possibilidade de ver os episódios todos de seguida (por estarem sempre disponíveis), o alargamento dos temas e a entrada em cena de actores e actrizes da chamada “lista A” de Hollywood, além de realizadores e de argumentistas vindos do cinema. 

A HBO foi a grande pioneira e foi desta empresa que saíram as primeiras grandes séries: a tragicomédia familiar “Six Feet Under” (2001); a portentosa e dickensiana “The Wire” (2002), que foi ainda mais longe na inovação narrativa e na ligação da ficção à realidade social; “Deadwood” (2004) e a sua formidável revisitação do western; e a brilhante mas fracassada “Roma” (2005).

Os caminhos abertos pela HBO não foram explorados apenas por empresas que chamaram a si a produção de séries e a co-produção de séries estrangeiras, como a Netflix (numa inteligente lógica de videoclube), e, mais tarde, a Amazon Prime ou a Disney+.

Várias foram as companhias produtoras que se lançaram também nas séries, o que nos deu obras tão excepcionais como a reinvenção “motard” de “Hamlet” que é “Sons of Anarchy” (2008), a dupla “Breaking Bad” (2008)/”Better Call Saul” (2015) ou “Prison Break” (2005) e “Damages” (2007). E isto aconteceu tanto nos EUA, onde é mais forte a indústria do entretenimento audiovisual, como noutros países: da Suécia saiu a magnífica “Forbrydelsen/The Killing”, 2007), do Reino Unido saíram as admiráveis “Line of Duty” (2012), “Peaky Blinders” (2013) e “Happy Valley” (2014), de França, “Engrenages”(2015);  da Alemanha, “Babylon Berlin” (2017); da Coreia do Sul, “Bimilui Soop/Stranger” (2017); de Israel, “Fauda” (2015). De certa forma, a longa-metragem acaba por ser quase a tradução
de um conto para o ecrã e a série é o romance; no primeiro caso, o tempo da narrativa é curto; no segundo, não é.

Houve quem visse na proliferação da grande ficção televisiva uma menorização do cinema. É certo que a produção independente acabou por ser atraída pela televisão, ao mesmo tempo que ficava afastada dos grandes circuitos de distribuição, onde há receitas de bilheteira. Aí triunfaram as grandes produções cinematográficas. Por outro lado, o cinema também chegou à televisão com a Netflix a produzir longas-metragens, de qualidade alta, média e baixa.

Mas, nisto, o que mais interessa em termos de receptividade do público é a percepção: o cinema também sofreu com a crise sanitária. A campanha de medo que começou há um ano e os encerramentos das salas de espectáculo nos vários países adiaram muitas estreias e atiraram para a televisão muitas obras pensadas para o grande ecrã.

Foi esse o caso de “Zack Snyder’s League of Justice”. Produtor e realizador, Snyder estava a relançar os super-heróis da DC (Super-Homem e Batman, além de outros) e uma tragédia familiar levou-o a abandonar o que seria o seu filme sobre a Liga da Justiça (que juntaria, além dos primeiros, Flash, Cyborg, Wonder Woman e Aquaman), na sequência de “Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça” (2016). Snyder saiu de cena e foi substituído pelo
realizador e argumentista Joss Whedon, que lhe alterou o projecto inicial. A longa-metragem que daí resultou (“A Liga da Justiça”, 2017) não foi bem recebida pelo público e Snyder acabou por regressar.

É assim que nasce “Zack Snyder’s League of Justice”. A versão de 2017 tinha duas horas de duração e esta tem quatro, com sequências acrescentadas e filmadas de novo. Snyder pôde fazer o que quis e o resultado ver-se-á depois. O mais interessante nisto é que o seu filme aparece agora como mini-série (de quatro episódios) e, em vez de se estrear no cinema, entra no “upgrade” da HBO que é a HBO Max.

Prevista para o segundo semestre na Europa, a HBO Max já começa a ter algumas das suas séries na HBO “normal”, como é o caso da portuguesa e é aí que entra a já anunciada “Zack Snyder’s League of Justice” e, muito possivelmente, a nova versão de cinema (e televisão?) de “Dune”, além de outros filmes.

Tal como aconteceu com “The Irishman”, de Martin Scorsese, na Netflix, as fronteiras começaram a esbater-se, e é natural que assim seja. Tal como é natural ver que, caso da HBO, a sua maleabilidade nesta matéria provém da sinergia com a grande produtora cinematográfica Warner Bros, fazendo as duas parte do mesmo grupo empresarial, a Warner Media.

O que divide a nova televisão e o cinema pode vir a ser apenas um problema tecnológico (e económico): como é que se pode transpor para o ambiente doméstico o ambiente mais concentrado da sala de cinema? De qualquer modo, em locais onde não há salas de cinema (ou se as há sem condições de qualidade), a alternativa será sempre disfrutar do entretenimento audiovisual em casa. Mesmo quando, e se, as democracias ocidentais voltarem a ser sociedades de liberdade.





Publicado no Portugal Digital





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