Às vezes, mas muito raramente, sinto um ligeiríssimo assomo de alguma coisa que poderia ser arrependimento pelo rumo literário que devia ter escolhido.
Quando deixei de ter a obrigação, como jornalista com alguma autonomia de agenda, de escrever todos os dias e percebi que podia escrever 200 páginas, quis dedicar-me àquilo que muita gente designa, depreciativamente, por "policiais". Era o tipo de literatura que me interessava.
Mas podia ter optado pelos "thrillers" histórico-religiosos que fizeram a fortuna de alguns, pelas histórias de amor com ou sem fundo social, pelo "porno para mamãs", pelas confissões mais ou menos espirituais, por coisas mais adocicadas que hoje parece que se vendem bem.
E teria êxito? Com certeza. Escrevo bem, dominava e domino bem as ferramentas da escrita (já o demonstrei em 10 romances "policiais" e sem serem edições de autor, já tenho 94 traduções feitas e publicadas desde 2007... com mais em curso e contratadas), já iria à televisão e não me faltariam editores enlevados com a coisa. E público nacional, claro, com muitos autógrafos e, decerto, muitas seduções. O problema é que me basta pensar nisso, e em temas que até dariam para esse tipo de livros, e apodera-se de mim um tédio terrível.
O "policial" é, com todas as evidências, um género abominado em Portugal, quando é feito por portugueses.
Não é o caso nos outros países, onde proliferam e prosperam livros excelentes, muito bons, bons, satisfatórios, medíocres e maus. Há uma saudável cultura de criação ficcional, que se multiplica na literatura e no audiovisual.
Em Portugal, os editores, em geral, o Estado e os seus "apoios às artes", os realizadores a quem sai mais barato inventarem eles os argumentos, o público ludibriável, os autores, os "autores" e os que o querem ser - são todos responsáveis por este deserto. Eu é que não.
Aliás, como antes se dizia, acho que para esse peditório já dei, realmente.
Acho que, nesta fase da minha vida, já me chega a boa receptividade que os meus "Ulianov e o Diabo" ("Mort sur le Tage") e "O Clube de Macau" ("Le Club de Macao") tiveram em França, onde a admirável editora Chandeigne os publicou. O primeiro teve uma segunda edição na prestigiada Livres de Poche e soube hoje que o segundo também a vai ter. Fico muito satisfeito, porque isso só comprova a qualidade do que escrevi e a aceitação do mercado francês.
Portanto, não me arrependo, de facto.
Salut!
2 comentários:
Fico contente com essa recetividade no estrangeiro. Entre nós, como dizes, o género ainda não pegou. Talvez porque haja muita coisa, mesmo coisa, que se aproxima e desvirtua a sua receção. Alguém diria que os nórdicos eram capazes de bons policiais?
Abraço e parabéns!
Obrigado, José Carlos!
Enviar um comentário