Há dois filmes famosos que,
quarenta anos depois, continuam a ser dois dos mais assustadores de toda a
história do cinema. O primeiro é “Tubarão” (“Jaws”, 1975), de Steven Spielberg,
e o segundo é “Alien, o Oitavo Passageiro” (“Alien”, 1979), de Ridley Scott.
Em “Tubarão”, os banhistas de
uma praia são ameaçados (e atacados) por um tubarão branco gigantesco. Dito
assim, não parece nada de especial. Mas acontece que a fera sanguinária é
mantida oculta durante grande parte do filme. O que se vê é uma força
irresistível que arrasta uma banhista solitária para o abismo do mar, uma barbatana
a rasgar as águas por entre os banhistas e o pânico incontrolável de quem está
na praia, dentro e fora de água, com acordes que hoje são clássicos. Só mais
tarde é que podemos ver o monstro em toda a sua dimensão.
Em “Alien” há um monstro
extraterrestre numa nave espacial, que começa por irromper do peito de um dos
tripulantes e que, mudando de forma, aterroriza e mata os restantes,
escondendo-se nas sombras, vendo-se apenas alguns pormenores do seu corpo
durante grande parte do filme. A ameaça é invisível.
O que torna estes dois filmes
exemplarmente assustadores é a simples ocultação da ameaça. Ela é tanto mais
perigosa e aterrorizadora quando não a vemos. Se tiver uma aparência familiar
(o palhaço de “It”, de Stephen King) ou hiperbolicamente descrita (os monstros
delirantes de H. P. Lovecraft), e se for bem construída, a ameaça é
assustadora. Mas quando ela se confunde com o meio em que estamos e não a
vemos, é muito pior. Henry James demonstrou-o em “The Turn of the Screw” (“Calafrio”,
1898) e John McTiernan no filme “Predador” (1987).
Há cerca de dois meses, como
aqui contei, fui jantar a um dos meus restaurantes preferidos. O restaurante e
as ruas em redor estavam sem gente. Na véspera, o ginásio que eu frequentava
fechou. O Governo mandou fechar as escolas. O Presidente da República, apesar
de ser o comandante supremo das Forças Armadas, fechou-se em casa com medo.
O que causou este medo foi um
“inimigo” invisível, um vírus, vindo do Oriente como tantos outros e activo há vários
meses.
Nas duas semanas anteriores,
pelo menos, as televisões nacionais já tinham começado a abrir os seus
telejornais com as notícias do “novo coronavírus”. Todos os canais o fizeram, e
fazem, numa escalada de horas sobre uma única notícia: um vírus e as suas
consequências.
Começámos a viver sob o
império do medo. O ambiente mediático estava criado, as autoridades políticas
decretaram regimes de excepção, impuseram limitações de toda a ordem (com
excepções transformadas em favores políticos), fecharam Portugal e a sua
economia. Há um ditado português que postula: “Quem tem cu, tem medo”. Portugal
viveu 300 anos de Inquisição e 48 de um regime igualmente repressivo. Estas
fatalidades deixaram marcas: ter medo é tão natural como uma região corporal que,
aliás, o ser humano nem consegue ver bem.
O cineasta alemão Rainer
Werner Fassbinder deu a um dos seus filmes um título exemplar: “O medo come as
almas” (“Angst essen Seele auf”, 1974). E Frank Herbert, o autor da magnífica
série literária “Dune”, formulou este mantra como lema de uma organização
político-religiosa da sua epopeia: “Não devo ter medo. O medo é o assassino da
mente. O medo é a pequena morte que traz consigo a aniquilação absoluta.
Enfrentarei o meu medo.”
O governo português, o Presidente
da República e grande parte da classe política, com o apoio de muitos “sábios”
são assalariados do Estado (portanto, de emprego e salárioseguros), agiram de
acordo com a associação do medo à sua anatomia: quiseram matar o “inimigo”
invisível com o fecho do país.
Conseguiram, com isso,
paralisar a economia, adiar o contágio (benigno, maligno e nem uma coisa nem
outra) e bloquear sectores que, noutra perspectiva (que, felizmente, tem
sobrevivido ao pensamento dominante), poderiam ter continuado a funcionar.
Depois, acossados por outro
medo (a quase morte da economia devido às suas decisões), os decisores quiseram
ir mais longe. Tinham tomado o gosto ao dedo e aliviado os seus receios,
típicos dos governos inseguros que deslizam invariavelmente para a tirania.
E com isso temos militares a
guardar as praias e os banhistas a manterem distâncias mensuráveis a fita
métrica no meio das ondas, uma direcção-geral a intervir nos jantares privados
dos cidadãos em suas casas e normas que obrigam a que, nos restaurantes, só se
sentem à mesma pessoas as pessoas que vivam em comunhão de habitação (sem
dizer, por exemplo, como é que ela se comprova, quem é que a fiscaliza e como é
que se resolve o problema de duas pessoas decidirem ir viver juntas e irem jantar
fora… antes de mudarem as suas moradas).
Segundo está previsto, os
restaurantes em Portugal poderão abrir a partir do próximo dia 18. Muitos
sobreviveram à crise, outros não, outros puseram-se a vender para fora as
iguarias que fazem. São um sector fundamental da nossa economia e um elemento
de conforto da nossa vida.
Enfrente o medo, leitor – vá
aos restaurantes. Se ainda tem dinheiro, vá comer fora. Escolha os melhores,
experimente outros, recupere a pequena felicidade associada ao acto de comer a comida
cozinhada pelos outros. Use a liberdade a que tem direito, que é aquela que foi
recuperada em 25 de Abril de 1974.
Se o fizer, neste e noutros
domínios, se resistir às tentações totalitárias de quem se move pelo medo,
estará a lutar pela sua própria vida e pelos seus direitos. E pela nossa
civilização.