O pai de um amigo meu esteve há pouco tempo internado num hospital público durante mais de duas semanas e grande parte desse tempo foi passado numa maca num corredor. Morreu no hospital.
Um amigo meu esteve dez dias internado num hospital público e também passou algum tempo numa maca num corredor. A condição clínica era grave. Uma pneumonia contraída no hospital matou-o.
Estes dois hospitais, em zonas de grande densidade populacional dos subúrbios de Lisboa, fazem parte do Sistema Nacional de Saúde e o custo da sua frequência por cada doente dificilmente corresponderá ao valor gasto no tratamento de cada doente em matéria de salários do pessoal envolvido, medicamentos, exames, equipamentos adequados e a funcionar e energia eléctrica. E, já agora, em instalações para acolhimento condigno dos doentes. (E, quanto a salários, também, todos se queixam e, a acreditar nos sindicatos, na imprensa e no Facebook, os enfermeiros já emigraram todos.)
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é defendido, como está, por muito boa gente. O “estar” é, neste caso, a sua situação financeira. Os defensores do SNS argumentam que ele faz parte do “Estado social” e que até deveria ser gratuito. A todos os níveis: dos hospitais aos centros de saúde onde uma consulta de clínica geral custa 5€ independentemente do que ganha quem lá vai: quem tem um salário de 600€ paga os 5€, quem tem um salário de 6000€ para os 5€.
Só que o pessoal, o equipamento, as infraestruturas e tudo o resto não vivem do que dá o céu. Vivem do dinheiro do Estado e do nosso. Por um lado, do IRS (e metade da população activa não paga IRS por não ter rendimentos para tal) e, por outro, das taxas moderadoras.
Segundo as estatísticas da Pordata de Fevereiro deste ano, que havia nessa altura 10 386 593 pessoas a residirem em Portugal.
Segundo um extenso trabalho do “Expresso” da mesma data, há 5,8 milhões de utentes do Serviço Nacional de Saúde isentos de taxas moderadores, número que é superior em 1,5 milhões ao de isenções concedidas em 2014.
Isto significa que só 4 586 593 utentes do SNS (por referência ao número da Pordata) pagam as taxas moderadoras. Ou seja, menos de metade dos utentes do SNS pagam directamente os serviços médicos que eles próprios procuram e que os restantes 5,8 milhões também procuram.
Ou seja, o Serviço Nacional de Saúde está claramente subfinanciado. Pensemos agora na questão de outra maneira e com base no exemplo dado: a assistência prestada pelo SNS devia ser paga em função dos rendimentos e, naturalmente, tomando como base a sua situação fiscal. E isto significaria que quem ganha 600€ poderia continuar a pagar os mesmos 5€ da consulta de clínica geral mas quem ganha 6000€ poderia pagar 50€. Ou menos, ou mais. Mas nunca os 5€.
Uma alteração deste tipo daria seguramente mais verbas directas ao SNS e poderia haver mais médicos, mais enfermeiros, mais equipamento, mais e melhores instalações.
O problema é político mas também é de mentalidades.
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Quando as propinas do ensino superior custavam 1200 escudos por ano (5,99€), a bandeira da “qualidade de ensino” não ia além das campanhas eleitorais das associações de estudantes. Mas quando o preço único das propinas passou para os 52 mil escudos (259.37€), os estudantes começaram a reivindicar a “qualidade de ensino”. À borla, o ensino podia ser mau. Mas pago é que já não.
Há algum tempo perguntei a uma pessoa convictamente de esquerda, militante do PCP e leitora evangélica do “Avante!”, que sempre se queixa das taxas moderadoras e cujos rendimentos não são muitos baixos, se estaria disposta a pagar taxas moderadoras mais elevadas, para ajudar a melhorar o SNS e servir melhor os que não têm dinheiro para frequentar consultas e outros serviços no sector privado (que essa pessoa pode fazer). Disse-me que não.
O governo anterior não quis, ou faltou-lhe a coragem para tanto, mexer nas taxas moderadoras e alterar a sua fundamentação (o que até se poderia compreender porque seria mais uma acha para a fogueira pré-insurrecional em que o País viveu em 2012 e em 2013). O mais longe que conseguiu ir foi na imposição de taxas moderadoras às mulheres que abortam (que o vão fazer porque assim o decidem) e no alargamento de algumas isenções, correcto numa perspectiva genérica.
Há uma semana, o PS propôs na Assembleia da República (indo decerto ao encontro do que pensam o governo do mesmo partido e o BE e o PCP que o apoiam) que as famílias dos funcionários ferroviários passassem a viajar nos comboios à borla. Ou seja, em transportes públicos que, no seu conjunto, servem o País, e insuficientemente, e que todos nós pagamos.
Politicamente, é isto: uma perspectiva utilitária do Estado em função de interesses sectoriais que se movem pelo dinheiro e pela acumulação de “regalias”.
É o que se passa na saúde e no SNS. Aliás, basta ver de onde emanam, politicamente, no caso do SNS, os grandes defensores da perversidade do sistema: a função pública, que (toda ela) dispõe de um serviço de saúde próprio com preços muito vantajosos (a ADSE). E como já se viu são esse eleitorado e mais o que pode ser considerado uma verdadeira aristocracia operária à escala portuguesa que estão nas boas graças do PS, do BE e do PCP e bem representados nas suas direcções e nos seus sindicatos.
Por isso, que lhes interessam, verdadeiramente, os desaires dos outros quando se pode arvorar a borla como ideologia e pagá-la com o dinheiro alheio?
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