domingo, 8 de dezembro de 2019

Um equívoco chamado Cabriz



O equívoco começa aqui: não há, actualmente vinho “Quinta de Cabriz”. Já houve, salvo erro, e a designação ficou. Mas não é a que existe e a empresa titular, a Global Wines, não usa para os seus vinhos a indicação, que neste caso seria indirecta, de vinho de quinta. Daí Cabriz, apenas.

E isto acontece porque os vinhos que comercializa com a marca “Cabriz” não são vinhos de quinta, de uma determinada quinta, de um determinado “terroir”. São vinhos que têm a indicação de serem do Dão. Mas são-no porque nascem no Dão ou são-no porque as uvas são compradas no Dão? Não se sabe. A origem das uvas é desconhecida. Mas até seria útil que, para certo tipo de vinhos, e de acordo com a sua tipologia, fosse obrigatória a menção da origem geográfica das vinhas.

Porque a sua ausência alimenta o equívoco. Repare-se como os vinhos Cabriz estão por todo o lado. Não há uma única cadeia de supermercados, do Continente ao Pingo Doce passando pelos menos conhecidos E. Leclerc e Aldi, que não os tenha. 
No site da empresa-mãe, a Global Wines, há um quadro que indica a produção, por ano, de sete milhões de garrafas. O número é dado a seco, ficando sem se saber se se refere apenas ao Cabriz, ou também aos outros. Seja como for, há qualquer coisa de inquietante neste número. E então na região do Dão…

E isto porque a base produtiva do vinho do Dão não é a grande propriedade. É, na agricultura em geral, um tecido de pequenas e médias propriedades. Esta fragmentação, que tem a ver com as características sócio-económicas da região, deu origem a uma enorme quantidade de quintas e muitas delas têm vinhos com características bem distintas, pelo trabalho feito na plantação das castas e na organização das vinhas, pela exposição solar, pela sua localização, pelo modo de elaboração dos seus próprios vinhos. É esta diversidade que valoriza o vinho do Dão. É um mundo multifacetado de sabores e aromas.

É por isso que a criação de um Dão pronto-a-vestir é um equívoco e de pouco adianta à Global Wines exibir muitos dos galardões que exibe. Porque o seu Cabriz, talvez até por ser um produto tipificado, mantém um perfil uniforme, sempre igual. Não há variações ao sabor da orografia. A garrafa que aparece à venda no Continente tem um conteúdo precisamente igual à garrafa da mesma marca que está à venda no Pingo Doce.

Poderá argumentar-se que, seja como for, e graças apenas ao rótulo, o vinho Cabriz ajuda a promover o Dão. Eis outra face do equívoco: o vinho Cabriz, com o seu perfil de vinho fácil, que, que tanto pode ser do Alentejo como do Douro, não é um cartão de visita do Dão. Muitos desses consumidores torcerão o nariz aos mais genuínos e legítimos vinhos do Dão, porque o seu carácter não é o do vinho fácil de beber.

Há pouco tempo bebi um Cabriz Touriga Nacional de 2016. Apesar de uma primeira impressão de baunilha, era bom e aguentou o teste das vinte e quatro horas, manifestando ainda as suas qualidades no dia seguinte. Mas ao que este Touriga Nacional me soube foi a vinho do Douro. 
Era, aliás, diferente de um outro Touriga Nacional da marca Cabriz que bebi num almoço no restaurante mantido pela Global Wines há poucos anos. Era melhor e mais genuinamente do Dão, mas suscitou-me uma dúvida: não era só feito de Touriga Nacional, apesar da informação no rótulo. E quem estava na loja confirmou a minha impressão. Mas, apesar dessa discrepância, tinha o sabor dos vinhos do Dão.

Se o vinho comercializado pela Global Wines (com a marca “Cabriz” e não “Quinta de Cabriz”) não me satisfaz, já o restaurante que a empresa mantém em Carregal do Sal com a designação Quinta de Cabriz é altamente satisfatório.

Tem apresentação e cozinha a condizer, preços equilibrados, um bom serviço e uma carta de vinhos bem pensada. E isto porque inclui o conjunto dos vinhos da empresa, que também estão disponíveis na loja existente no local, a preços muito racionais. É uma forma inteligente de a Global Wines promover os seus produtos, numa boa correspondência com a gastronomia beirã em que a cozinha do restaurante se esmerou. E beneficia, naturalmente, da associação ao vinho que está em todo o lado com a mesma marca.

Se o conceito do vinho de marca Cabriz é óbvio, já a Global Wines não o é. Mostra-se pouco e, em termos públicos, dela saber-se-á ainda menos.

Nasceu da empresa Dão Sul (criada em 1990 e, aparentemente, ainda existente, sendo indicada com esta designação pela Comissão de Vinicultura da Região do Dão) e alargou a sua actividade às regiões da Bairrada, do Douro e do Alentejo e, no exterior, ao Brasil e à China. Terá, mais recentemente, comprado a União Comercial da Beira, também de Carregal do Sal.

O site da Global Wines, porém, está “parado” em 2015 e é pouco explícito em vários domínios, como é o caso dos sete milhões de garrafas anuais produzidas (um número em bruto, onde, por exemplo, seria interessante saber-se qual a percentagem que vai para discutíveis “marcas brancas” dos supermercados Lidl e Continente), o caso dos seus dois
accionistas ou a localização dos 30 hectares de vinhas orgânicas e dos outros 450 hectares (não orgânicos?) que terá em Portugal.

Dos vários vinhos que a empresa comercializa, o Quinta do Encontro, um bairradino que combina, surpreendentemente bem, as castas Baga e Merlot, parece ser o melhor de todos. Nota-se bem o peso da Baga e a Merlot equilibra-a, sem a abafar. 

Da antiga propriedade conhecida por Paço dos Cunhas, em Santar, sai também o Paço dos Cunhas Nature, orgânico e sem estágio em madeira. Ou seja, sem o sabor adocicado que mancha a maioria (mas não todos) dos vinhos estagiados em madeira. Estes pormenores não existem no site da Global Wines, de fotografias bonitas e informações escassas, que dá todo o destaque à marca “Cabriz”, com site próprio. Comercialmente, compreende-se.

Poderá defender-se que um vinho dito “do Dão” como Cabriz, e apesar das suas características, será sempre uma mais-valia para promover o Dão. Pode acontecer, mas o vinho do Dão a sério não é este. E os prémios obtidos no estrangeiro significarão pouco se apenas reflectirem vinhos feitos à medida das modas do mercado.

Não sei há quanto tempo existem as marcas “Meia Encosta”, “Terras Altas” e “Grão-Vasco”, mas lembro-me de os ter bebido antes de começar a apreciar e a compreender o vinho, antes de conhecer os melhores vinhos do Dão. Depois, nunca mais os provei. Cabriz situa-se, para mim, nesse patamar negativo. Dão? Nem dado.


Sem comentários: