domingo, 10 de novembro de 2019

Plágio, homenagem ou aproveitamento de boas ideias?



A sequência original


Uma das sequências justamente mais famosas dos filmes do grande cineasta Serguei Eisenstein é a do carrinho de bebé que, desgovernado, desce as escadarias de Odessa no meio de uma multidão que foge a uma carga militar. O filme é "O Couraçado Potemkine" (1925), onde as suas técnicas pioneiras de montagem estão brilhantemente expostas.
Em 1987, no seu filme "Os Intocáveis", Brian de Palma montou uma cena de tiroteio numa grande estação ferroviária e recuperou a ideia do carrinho de bebé, desgovernado no meio dos tiros trocados entre os homens de Eliott Ness e os de Al Capone. De Palma foi sempre um realizador inspirado e não precisava de fazer um plágio. Também nada fazia desta sequência uma homenagem a Eisenstein.
Estive no Festival de Cinema de Veneza e consegui entrar numa entrevista coletiva do realizador, sendo a minha única pergunta sobre o porquê da replicação da famosa sequência de Eisenstein. 
De Palma respondeu, simplesmente, que era uma boa ideia e que fizera a sua sequência por ser apenas uma boa ideia. Era, realmente, o que parecia. Se tivesse ido buscar a Eisenstein mais do que a sequência do carrinho de bebé, já seria plágio? Talvez. Mas De Palma até podia ter respondido que só tinha querido homenagear Eisenstein. 


Os "descendentes" da escadaria de Odessa


Talvez tenha sido o que quis fazer Walter Hill em "A Fronteira do Perigo" (1987), relativamente a Sam Peckinpah, com quem tinha colaborado, e ao seu magistral "A Quadrilha Selvagem" (1969). (A sequência final deste filme é deslumbrante e eu também a recordei, e ao seu ambiente fechado mais do que ao jogo de massacre que a caracteriza, em "Crimes Solitários". Mas pode ser que ainda o faça, na totalidade, em homenagem a um dos meus realizadores preferidos.)  
Há poucos dias deparei-me com mais um caso. Em 19 de Janeiro de 1924, a revista americana "Collier's Weekly" publicou um conto de Richard Connell intitulado "The Most Dangerous Game" (que julgo ter sido publicado em Portugal numa antologia de histórias fantásticas). 
A história tornou-se um clássico: uma caçada humana numa ilha. O primeiro filme que dela nasceu foi "O Malvado Zaroff" (1932). Uma das mais interessante adaptações foi "Perseguição sem Tréguas" (1993), de John Woo. O tema é sempre o mesmo e não há volta a dar-lhe: um grupo de caçadores bem armados junta-se para caçar (e matar) presas humanas. 
E é esse o tema do 22.º livro de Lee Child, "Past Tense" (2017), que acabei de ler há poucos dias. Revelada a mais de dois terços da história, mas previsível para quem conhece o conceito, a ideia da caçada humana sustenta o que talvez seja um dos mais interessantes títulos da já demasiado extensa série dedicada a Jack Reacher. Será homenagem (claramente à versão de John Woo, se é o caso), plágio ou apenas o aproveitamento de uma boa ideia? É difícil perceber.
Um exemplo que está na fonteira do plágio é o da série (ou mini-série, porque não parece ter continuidade), "The Enemy Within". Vi os dois primeiros episódios, de qualidade média, e estive o tempo todo a pensar em "The Blacklist". Uma não é, tecnicamente, plágio da outra, mas… já não avancei para o terceiro episódio.
Em 1979 o filme "Chamada Misteriosa" introduziu (e julgo que terá sido a primeira vez) um dispositivo narrativo que eu ainda não tinha visto: uma mulher recebe um telefonema ameaçador… e o assassino que lhe telefona está dentro da própria casa. 
"Chamada Misteriosa" não entusiasmava e este começo não tinha sequência à altura. Os "remakes", ou variações, que depois teve também não ficaram para a história. Talvez se a revelação do telefonema tivesse ficado para o fim… mas, aparecendo logo de início, não havia mais nada à altura durante o resto do filme. Mas foi uma boa ideia.
Este dispositivo é retomado recentemente num romance português: "Do outro da linha, a telefonista [...] perguntou a Doris se, por acaso, existia a possibilidade de o assassino ainda estar dentro da casa. Foi então que a Sra. Mullens, no seu sotaque do Arkansas, lhe respondeu [...] que essa possibilidade não era uma mera possibilidade, mas um facto. O assassino ainda lá estava dentro, porque pertencia àquela casa desde que nascera." Trata-se de "A Noite em que o Verão Acabou", de João Tordo. Não sei, naturalmente, se é homenagem, plágio ou apenas o aproveitamento de uma boa ideia. Mas é, tão só, mais um caso.



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