A Rotunda da Granja na Serra do Bouro, em Caldas da Rainha, é pequena e com visibilidade limitada e foi uma solução de recurso já lá vão três anos, para evitar colisões frequentes.
Depois de construída, a rotunda, careca, ficou à espera. A ideia dominante terá sido a de pôr qualquer enfeite no seu centro da rotunda porque, enfim, era necessário fazer qualquer tipo de "embelezamento".
"Embelezar" a Serra do Bouro era uma intenção do anterior presidente da União de Freguesias de Santo Onofre e Serra do Bouro, que já não ficou para um segundo mandato. No fim do seu período, deu com os burrinhos na água e saindo, felizmente, sem concretizar o seu conceito de "embelezamento". O presidente que lhe sucedeu, nem se percebo como, arranjou uma peça metálica para a rotunda e quis, ou alguém por ele, associá-la a "Os Lusíadas", com versos e tudo, garantindo que se fazia uma homenagem a emigrantes e a imigrantes.
E, no passado dia 15, depois de várias peripécias, lá ficou instalado o objecto na rotunda com discursos (até do populista presidente da Câmara Municipal), missa, repasto com porco e peru e momento artístico, pagos, de uma maneira criativa, com "rotundas" e não com euros. E o resultado?
Ei-lo.
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A coisa: é como um ferro que caiu do céu, ficando espetado no centro da rotunda |
Quem chega à rotunda vindo de Oeste ou de Leste vê uma peça escura, a que pouca atenção dará, porque é mais importante saber se há veículos que estejam a aproximar-se pela direita ou pela esquerda.
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Vista de lado: absolutamente irrelevante |
Por sua vez, quem se aproxima por Norte ou por Sul vê (ou não...) o equivalente a uma linha vertical. E o problema é o mesmo: se quer saber o que é, terá de abrandar e não se preocupar com quem chega pela direita ou pela esquerda.
Ou seja: o objecto de pouco serve. É irrelevante.
E o seu autor gostará de ver uma obra sua transformada numa irrelevância? Suponho que não. Mas essa também é, felizmente, uma maneira de ela passar despercebida. Porque, na realidade, artisticamente, a coisa é débil.
Estamos a falar, como se pode ver pelas imagens, de duas peças espalmadas de metal e de duas silhuetas no padrão homem/mulher, tudo em ferro negro. Esteticamente, o objecto é também irrelevante. Anguloso, escuro, rasgado, pode ilustrar tudo e o seu contrário. O excerto de "Os Lusíadas" que lhe foi colado podia ser substituído por um qualquer rabisco de Carlo Petri Giovanni Guglielmo Tebaldo Ponzi, uma espécie de "Vamos Mudar" da história financeira, que talvez ficasse mais perto da realidade.
Já li que a intenção do objecto é representar velas de barcos (talvez tendo o desastrado logotipo da União de Freguesias de Santo Onofre e Serra do Bouro) e, com as silhuetas humanas, simbolizar os movimentos migratórios.
É certo que, na região, houve fluxos migratórios, daqui para os EUA e para outros países e de outros países para cá. Mas o que, em matéria de navegação marítima, está mais associado à Serra do Bouro (e às falésias abruptas da fronteira ocidental do concelho) e maior significado tem é o naufrágio do navio inglês "Roumania", por acaso mais perto da Foz do Arelho, em 1892. Mas é possível que ninguém se tenha recordado desse acidente.
Muito menos o autor, supor-se-á. Carlos Enxuto, assim se chama o autor da peça, é um nome conhecido das artes em Caldas da Rainha. Mas não na área da escultura em ferro. A sua especialização é a cerâmica e o seu site mostra algumas das suas peças. E teria sido muito mais relevante uma peça escultórica em cerâmica, noutras dimensões ou com materiais mistos por causa da exposição aos elementos.
Há uma actividade, industrial e artesanal, em cerâmica em Caldas da Rainha que devia ser destacada e promovida como principal património artístico do concelho. E, nele, entre o artesanato e a produção industrial, vê-se que Carlos Enxuto terá papel de relevo. Como teve uma fábrica de cerâmica situada, até há poucos anos, a menos de um quilómetro da rotunda da polémica. Infelizmente, não é esta faceta de Caldas da Rainha que está representada na coisa.
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Peças de cerâmica no site de Carlos Enxuto: a sua especialidade não é o ferro |
E como é que se chegou a esta obra? É segredo.
O presidente da União de Freguesias de Santo Onofre e Serra do Bouro recusou-se, de maneira arrogante, a responder às perguntas que lhe fiz no início deste mês. O facto de assim ter agido mostra, apenas, que haverá alguma coisa a esconder. Opções? Preços? Autoria? Conceito? Bem, anda tudo ligado.
É curioso, no entanto, que apareça, quase escondida, uma informação sobre esse assunto num dos dois jornais locais, sobre este assunto. Por ela ficamos a saber que "a União de Freguesias pediu propostas a outros artistas caldenses, mas foi a de Carlos Enxuto que mais surpreendeu pela positiva o executivo" e que "a obra ficou em 18 500 euros e foram gastos mais cerca de 5 500 euros na base e noutros melhoramentos". Ou seja, 24 mil euros.
Se juntarmos a estas informações, escassas, o silêncio do presidente da União de Freguesias, todas as especulações são possíveis: houve mesmo outros "artistas" contactados ou a escolha foi unipessoal? E a Escola Superior de Artes e Design e os seus professores e alunos foram ignorados? Houve aqui amiguismo ou algo parecido? Tudo é possível.
Quanto ao preço, é impossível saber a que, na realidade, corresponde. Mas há uma coisa que é possível verificar: enterrar 24 mil num objecto de ferro desta natureza que, depois, mal se vê é um desperdício quando há, nesta mesma região, buracos por tapar, ruas por arranjar, obras públicas deixadas a meio e tantos outros sinais de negligência e de abandono.
Esta gente acenou em Setembro de 2021 com o lema "Vamos mudar" e, para mal de todos nós (não deles...), cada coisa que muda é para pior. Pior e cada vez menos transparente. É uma "arte" que, no entanto, é muito relevante para os seus "artistas".
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O segredo é a alma do negócio: Nuno Santos, presidente da União de Freguesia |