quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O logro do vinho "de Pias"



O seu destino bem merecido devia ser… a pia!


Chamemos os bois pelos nomes: há, nisto tudo, logro. E com dolo. Há os perpetradores. E há vítimas. Estas até podem não ser prejudicadas monetariamente ou fisicamente. Mas estão a ser enganadas, porque estão a comprar uma coisa e é outra. Pode haver, que há, um bom argumento técnico e jurídico para se continuar a fazer. Pode haver, que há, a satisfação do lucro rápido e fácil. Mas está errado. E só se pode estranhar o silêncio.
Repare-se na imagem. A fotografia foi tirada num supermercado, na zona dos vinhos, na secção dos populares “bag-in-the-box”. Mas também os há em garrafa e nas prateleiras dos preços mais baixos. Chamam-lhes tudo, isto, aquilo e um par de botas… “de Pias”. E é mentira.
Há uma freguesia do concelho de Serpa, no Alentejo, chamada Pias, com 163,68 km² de área e 2852 habitantes (segundo o censo de 2011). Era, e pode ser que ainda seja, uma zona de onde saía um vinho ligeiramente diferente do vinho padrão do Alentejo, com uma certa frescura que, em certa medida, o aproximava mais do carrascão do Noroeste de Lisboa. Fui algumas vezes comprar lá vinho e também o bebi lá. Nunca mais o farei, nem sequer o comprarei fora de Pias.
A freguesia, ou o concelho (ou o empresariado local), não fez por proteger, como marca, região ou outra coisa qualquer, o vinho local. À conta da fama (e da garantia de um preço por tradição mais baixo), generalizou-se, lentamente, o vinho “de Pias”. E em especial no formato “bag-in-the-box”, por ser o que sai mais e para públicos “populares” (e, às vezes, menos “populares”…). Actualmente, basta olhar para imagens como esta e perceber que se instalou uma loucura gananciosa que não poupa ninguém.
Na disseminação da coisa convergem empresas de comercialização de vinho, que o compram onde calha e já pronto a ser engarrafado, empresas vitivinícolas locais que até reconhecem que o seu “de Pias” não tem proveniência geográfica determinada (é o que se chama ter má consciência…), empresas que anseiam ter uma boa posição no mercado com vinhos de todas as regiões, produtores e empresários respeitáveis. Estão, a um nível que transcende muitas empresas e quintas de honestidade transparente, numa postura de claro logro. Podem fazê-lo. Podem chamar ao produto que vendem tudo o que querem, à excepção de regiões determinadas ou de marcas com dono, mas o certo é que estão a pôr no mercado vinho que está iniludivelmente associado a uma determinada região. E os consumidores compram, mesmo que seja evidente a origem (basta ver pelo código postal) e mesmo quando não é, porque acredito, sem o poder garantir, que já sai da freguesia de Pias vinho com “Pias” no rótulo e que provém de outras regiões.
Nisto tudo há ainda um elemento estranho: o silêncio e a complacência da imprensa, seja da imprensa generalista seja das revistas de vinhos e dos “críticos de vinho”. Haverá, pelo menos, duas explicações: por um lado, o “bag-in-the-box” está, para este sector que se considera uma elite, num patamar que não admitem que seja o seu quando têm de comprar vinho com o seu próprio dinheiro; por outro lado, os vinhos que são objecto das suas “críticas” e reportagens são oferecidos pelas empresas, inclusivamente por aquelas que lá vão pondo no mercado o tal “de Pias”.
Num sector, como o da imprensa, tão cheio de presunção quanto ao que está “certo” ou “errado”, é um branqueamento que cheira a “rolha”.
Nisto tudo, a vitima é sempre a mesma: o consumidor incauto. Pode ser que, um dia, alguém se queixe a sério e as autoridades (ou as associações de defesa do consumidor, que também se calam perante este fenómeno) decidam agir.

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