Já ao anoitecer cheirava a queimado. Acontece, por vezes, já que a casa fica numa zona elevada e o vento traz de incêndios que não estão próximos o fumo, o cheiro a queimado e as partículas pretas.
Mas depois das nove e meia, a situação revela-se em toda a sua gravidade e, à distância, na direcção da Foz do Arelho, vê-se um grande clarão avermelhado e fumo a erguer-se. O vento sopra com força e vai empurrando as chamas. Para Norte, ao longo da costa atlântica, mas também com faúlhas que dançam sem rumo.
Fui ver. A Estrada Atlântica, que percorre toda a fronteira ocidental do concelho de Caldas da Rainha e sua freguesia da Serra do Bouro, é balcão e plateia para as dezenas de pessoas que assistem ao espectáculo das chamas vermelhas que não param. Há poucos bombeiros em acção.
Volto para casa, preocupado. Falo com o vizinho da casa de cima, que também está bastante preocupado. A extensão de mato que nos separa das chamas é feita de vegetação seca. Se as chamas atravessarem a estrada, como chegou depois a acontecer, podem avançar rapidamente. Ele começa a regar a casa e a vegetação que a circunda.
Regresso a casa e, de repente, não há luz. Quase às escuras, regamos vegetação e a casa.
Ao longe, continua a ver-se o clarão e o fumo e a ouvir-se o crepitar da vegetação a arder.
Nova incursão: o incêndio já atravessou a Estrada Atlântica e ameaça casas, mais para norte. Dizem-me que os bombeiros já nem combatem as chamas mas que já só se preocupam em defender as habitações.
Regresso a casa. Sempre às escuras. O clarão, o crepitar e o fumo continuam. Há cerca de um quilómetro de mato seco a separar-nos do incêndio mas é como se o perigo estivesse já no jardim.
Saio uma terceira vez. Na Estrada Atlântica as chamas vão ainda pastando nos terrenos ardidos mas pode dizer-se que a situação está controlada, pelo menos aquela que nos ameaçava directamente.
No regresso informo o meu vizinho. Ao longe, a ameaça começa a decrescer.
É quase meia-noite. Em contactos com a EDP, ouvimos as previsões do regresso da electricidade: meia-noite e trinta, uma e trinta... até ao ponto em que já não dão previsões.
Às quatro horas, a electricidade regressa. As chamas já não se notam.
Um candidato à junta de freguesia queria "embelezar" a região da Serra do Bouro. Fique-se, por ser mais seguro, com o manto negro e ardido deixado pelas chamas: é um retrato trágico da horrenda situação que os seus "padrinhos" deixaram.
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De manhã o que se vê é desolador. O incêndio percorreu, muito rapidamente, mais de quatro quilómetros da Estrada Atlântica, passando do lado do mar para o interior em alguns pontos e ameaçando casas.
O que era uma superfície verde, de aspeto encantatório, é uma terra negra, que ainda fumega. Em alguns locais as árvores foram poupadas e só ardeu a vegetação rasteira. Depois de ter sido pasto das chamas, o terreno é agora pasto para mirones e fotografias.
O que nunca os poderes públicos quiseram fazer, fizeram as chamas: o terreno ficou tragicamente limpo e o que ardeu já não voltará a arder.