domingo, 28 de setembro de 2014

Sobre a necrofilia, a propósito de "Alabardas"

Uma obra criada por um autor é, para mim, um objecto completo.
Como leitor ou espectador de cinema, interessa-me a história completa, o livro tal como o escritor o escreveu e foi depois publicado, o filme tal como o realizador, o argumentista e o produtor o tornaram possível. É desse modo que um e o outro objecto são postos à disposição do público.
Posso ter interesse no livro ou no filme inacabados, no "director's cut" de um filme ou no romance que, por razões alheias à arte, o editor não publicou. Mas, nestes casos, a minha curiosidade advém do conhecimento que possa ter das outras obras do autor e da curiosidade de confrontar uma obra incompleta com todas as outras ou da sua relevância histórica, cultural ou mesmo política.
Serguei Eisenstein teve planos, aparentemente, para um terceiro "Ivan, o Terrível" e desse projecto só restou um fragmento. As suas filmagens no México deram origem a duas versões diferentes, construídas já depois da sua morte com vinte anos de distância. Vi uma delas e não me entusiasmou como "Ivan, o Terrível" ou "O Couraçado Potemkin" ou mesmo "Alexander Nevsky". Não era Eisenstein, era apenas uma parte de um seu trabalho.
José Saramago deixou uma história inacabada que seria, as informações não coincidem, novela ou romance. Melhor: a história, com três capítulos, não está inacabada. Está apenas começada. Haverá quem queira conhecer o texto, haverá quem, sabendo que ele não termina, não o queira conhecer.
As herdeiras de Saramago e a editora que agora detém os direitos das suas obras não foram dessa opinião e os três capítulos aparecem agora em livro. Não por si, como uma obra completa, mas acompanhadas (pela descrição) de vários outros textos que já permitem transformar três capítulos num livro... comercializável.
E é aí que nasce a dúvida. Estes três capítulos representam na sua integralidade o projecto do autor (morto antes de poder dar seguimento à história)?
Sabemos, aparentemente, qual é a última linha de diálogo com que a história terminaria mas nunca a leremos. Porque não existe.
E, nesse caso, não teria sido preferível respeitar a natureza e respeitar o autor, mantendo a reserva sobre uma história por escrever?
Ou, então, optando-se pela sua divulgação (para a qual o autor não foi consultado), não teria sido de maior lisura oferecer os três capítulos aos potenciais interessados, disponibilizando-os gratuitamente? Poderá dizer-se que, desse modo, o autor não seria remunerado pelo trabalho feito. Mas o autor, já ausente deste mundo, nunca poderia usufruir dos seus proventos. E, sendo Saramago um vigoroso combatente do capitalismo, não se justificaria que, em sua memória, prescindissem o editor e as herdeiras dos lucros da publicação, que será decerto muito mais aliciante para os estudiosos da sua obra e para os seus fãs indefectíveis?
É que, não sendo esse o caso, a iniciativa da publicação de "Alabardas", a versão curta do que seria o título original ("Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas") da história que ficou por escrever, assemelha-se a um exercício de necrofilia. Obviamente lucrativo.  

2 comentários:

Paulo Pires disse...

O que aqui aprendemos .. ;)

Pedro Garcia Rosado disse...

"Aprender, aprender sempre" - era uma frase atribuída a Lenine pelas Edições Avante!´... :-)